Amor, Morte e Rock and Roll no romance de Salman Rushdie
por Marcelo Silva Costa

"O chão que ela pisa" de Salman Rushdie foi lançado em fevereiro de 1999 e é, desde então, um dos grandes livros da década. E é um romance viciante. 575 páginas que assustam quem olha por fora e suspendem quem olha por dentro. Mas, do início então. 
"O Chão que ela pisa" é a história do casal Ormus e Vina, contada por Ray.

Ormus e Vina formam o núcleo artístico e pensador do VTO, uma banda de rock que vende bilhões de discos, incomoda a ordem vigente com suas letras e que é o veículo de expressão do amor louco de Ormus por Vina, e vice-versa. 
Ray é fotografo, amigo de Ormus, amante de Vina. É ele quem conta a história depois de todo o desastre.

O romance é a recriação do mito de Orfeu e Eurídice. No mito, Orfeu desce ao inferno para buscar Eurídice, morta por uma picada de cobra. Nesse romance, Vina, tragada por um terremoto, é o caminho do inferno para a dupla Ormus/Ray, mas, a certa altura, o interlocutor questiona: "Será que o fracasso de Orfeu em resgatá-la é uma prova do destino inevitável do amor (ele morre); ou da fragilidade da arte (ela não é capaz de levantar os mortos); ou da covardia platônica (Orfeu não morre para estar com ela; não é nenhum Romeu, ele); ou da dureza dos, digamos, deuses (eles enrijecem o coração contra os amantes) ?".
Alguém tem a resposta?

O pano de fundo da história é o rock and roll e a nascente industria de celebridades. A certa altura Ray contempla: 
"Por que a gente gosta de cantores? Onde se esconde o poder das canções? Talvez se origine da mera estranheza de se existir canto no mundo. A nota, a escala, o acorde; melodias, harmonias, arranjos, sinfonias, ragas, óperas chinesas, jazz, blues: o fato de essas coisas existirem, de termos descoberto os intervalos mágicos e as distâncias que produzem o pobre punhado de notas, todas ao alcance da mão humana, com as quais construímos nossas catedrais sonoras, é um mistério tão alquímico quanto a matemática, ou o vinho, ou o amor. Talvez os pássaros tenham nos ensinado. Talvez não. Talvez sejamos, simplesmente, criaturas em busca de exaltação. Coisa que não temos muito. Nossas vidas não são o que merecemos. De muitas dolorosas maneiras elas são, temos de admitir, deficientes. A música as transforma em outra coisa. A música nos mostra um mundo que merece os nossos anseios, ela nos mostra como deveriam ser os nossos eus, se fôssemos dignos do mundo". 
Uau. 

Isso tudo sem contar os momentos em que imaginário e real se cruzam, a lá Forrest Gump, como na passagem em que o empresário Yull Sighn coloca o músico Ormus na parede: 
"Eu disse que tinha acabado de falar? Eu digo quando terminar, e não vou terminar enquanto você não me disser, moleque, como é que conseguiu aquele último número que cantou, quem foi o contrabandista filha da puta que roubou aquela música pra você... essa música, nós só vamos lançar no ano que vem. Ainda nem foi gravada. Não tem nem uma porra de disco demo. O sujeito acabou de compor, acabou de tocar na porra do piano dele lá em Londres... - e Ray relembra: O último número tinha sido uma balada suave, lenta, cheia de tristeza: uma canção para Vina eu pensei, uma das que Ormus compôs na cobertura do prédio, enquanto sonhava com o amor perdido. Mas eu estava errado. O nome da música era Yesterday" ... outro trecho: 

"Mesmo chegando aos anos 80 como um dinossauro o VTO ainda arrastava multidões. Isso tudo por que o rock nascente era uma decepção, embora um quarteto irlandês, Vox Pop, os tivesse impressionado. Nem mesmo o Runt, o novo rejeicionismo, todo o desdém e cuspidas, tinha interessado Ormus, e depois de uma breve onda de fama e escândalos, não durou muito. 'Como poderia durar ? Não se começa uma revolução numa loja de roupas'", comenta o astro, afinal ele é o outro lado da história, uma história que, sim, mudou as coisas. 

O "Chão que ela pisa" é romance contemporâneo, clássico, vivo, instigante e inteligente. É uma história de amor, morte e rock and roll. É cultura popular global. É obrigatório. E, ah, claro, Salman Rushdie é, sim, autor dos Versos Satânicos, e a canção do VTO, letra de Ormus, que dá titulo ao livro, The ground beneath her feet, foi musicada por um grande quarteto irlandês cujo vocalista antigamente era conhecido como Bono Vox. 
"The Ground Beneath Her Feet" é literatura pop da melhor qualidade. 

Marcelo, 29, edita o zine Scream & Yell