'Ensaios Reunidos', de Otto Maria Carpeaux
por Jonas Lopes
Gymnopedies
26/08/2006


Tivesse atuado em um país em que a cultura é tratada com o respeito que merece, Otto Maria Carpeaux seria objeto de constantes homenagens em Academias de Letras e daria nome a diversos Centros Acadêmicos de jornalismo país afora. Como trabalhou no Brasil, onde erudição é quase palavrão, o jornalista (que nasceu na Áustria, mas viveu seus últimos 37 anos entre nós) só é lembrado pelos intelectuais, e em ritmo de conta-gotas. Vale a pena, contudo, aproveitar cada gota. A última delas é o aguardado segundo volume dos seus Ensaios Reunidos, lançado pela editora Topbooks, em parceria com a UniverCidade, longínquos nove anos depois de lançado o primeiro volume (esgotado nas livrarias). Culpa da má condição de conservação dos jornais de onde foram tirados os artigos.

É um catatau de respeito, mais de 900 páginas, num total de 205 textos, escritos entre 1946 e 1971. Enquanto o primeiro volume reunia seis livros de crítica literária, o segundo é mais variado: traz ensaios publicados na imprensa sobre uma gama de assuntos, de filosofia a religião, de artes plásticas a poesia, de economia a sociologia. Ensaios Reunidos traz, por fim, três prefácios, sobre Manuel Bandeira (de 1946), Goethe (1948) e Hemingway (1971).

O crítico contrariava a teoria (tão em voga na pós-modernidade) de que é impossível se especializar em mais de um assunto e que a melhor solução é ter uma noção superficial de cada um. É claro que é complicado comparar a situação de um jornalista hoje com a de um que atuou há décadas atrás - antes da internet e da avalanche diária de informações. Ainda assim, a bagagem intelectual de Carpeaux é assustadora. Não são poucos os brasileiros que o comparam - e alguns até o preferem - a Edmund Wilson, também famoso pela pluralidade de conhecimentos. Os partidários do "austro-brasileiro" garantem que, caso fosse norte-americano, francês ou inglês, seria tão conhecido no exterior quanto Wilson.

De literatura e música erudita, Carpeaux sabia literalmente tudo. Escreveu sobre esses assuntos duas enciclopédias: História da Literatura Ocidental ("uma obra sem paralelos no Ocidente", glorifica o jornalista Sérgio Augusto) e Uma Nova História da Música. Era também especialista em política. Foi socialista convicto quando jovem e apesar de ter abandonado a ideologia, nunca deixou de lutar pela liberdade de opinião. Escreveu editoriais ferozes no Correio da Manhã contra o governo militar durante a ditadura e apoiava as passeatas organizadas por estudantes. Os únicos assuntos que não o interessavam eram cinema, futebol e música popular.

A grande qualidade de Carpeaux, aquilo que faz com que ele mereça tanto disputar o título de maior crítico literário brasileiro, era a acuidade, a habilidade em abusar dessa erudição ilimitada e, ao mesmo tempo, escrever com a simplicidade de um bom texto jornalístico. Afinal, lembremos que boa parte dos textos de Ensaios Reunidos foi publicada em jornais como Correio da Manhã e O Estado de S.Paulo. Não há, portanto, vícios acadêmicos, intermináveis notas de rodapé, termos rococós e/ou prolixos e análises impenetráveis. Os ensaios são relativamente curtos (entre duas e cinco páginas) e aliam densidade analítica e clareza de linguagem em doses equivalentes. A quantidade de nomes de escritores, compositores, filósofos, historiadores e políticos citados por Carpeaux não deve ser lida como pedantismo.

E se às vezes ele nos tira do sério com uma afirmação polêmica, como quando despreza os arabescos de Mozart ou afirma que "Chopin não é um Beethoven, tampouco é um Wagner ou um Debussy, não tinha o gênio dramático que aqueles três manifestam", na frase seguinte nos encanta: "(Chopin) não é dramaturgo e sim poeta lírico, e por isso as teclas brancas e pretas começaram a cantar quando tocadas pelas suas mãos, e atrás do mecanismo da grande caixa preta descobriu-se a alma que nela está presa". Carpeaux gostava de adentrar ângulos inexplorados dos assuntos - relaciona, por exemplo, Balzac ao marxismo e analisa os trechos bíblicos que poderiam ser transformados em contos literários.

Nascido em 1900, Otto Maria Karpfen deixou a Áustria em 1938, quando o país foi ocupado pelos nazistas. Apesar de não ser judeu (tinha formação católica), foi perseguido por ter trabalhado como secretário particular do ex-primeiro-ministro Engelbert Dollfuss. De seu período na Europa, o causo mais memorável foi o seu encontro com Franz Kafka em Berlim, em 1924. Curioso em saber quem era aquela figura interessante e desconhecida, Carpeaux foi informado de que se tratava de um escritor de Praga, "que publicou uns contos que ninguém entende".

Depois de algum tempo fugindo pela Europa, Carpeaux chegou ao Brasil em 1939, sem saber uma palavra de português. Em três anos aprendeu a língua (já dominava outros dez idiomas), afrancesou seu sobrenome, estudou tudo que deveria saber sobre o país e em 1941 se viu pronto para estrear na imprensa tupiniquim. Ofereceu ao Correio da Manhã um artigo justamente sobre Kafka, o primeiro texto sobre o autor tcheco publicado no Brasil.

O crítico teve a sorte de aportar no país naquele que talvez tenha sido o melhor momento da história da inteligência brasileira. Atuavam nessa época abençoada os críticos Álvaro Lins, Antonio Candido e Wilson Martins (os dois últimos ainda estão vivos), os antropólogos Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda, os romancistas Graciliano Ramos, Clarice Lispector e Guimarães Rosa e os poetas Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto. Sua grande vantagem é que já chegou com uma boa bagagem de cultura estrangeira. Só precisou correr atrás dos clássicos da nossa literatura.

Carpeaux era introspectivo e saía pouco de casa, o que também explica a sua alta produtividade. O principal motivo da retração: era terrivelmente gago, o que lhe causava constrangimentos. Carlos Heitor Cony, em crônica publicada na Folha de S. Paulo, relata uma viagem que fez com o amigo por Minas Gerais em 1966: "Na viagem à capital mineira, Carpeaux ao meu lado, ele citou Kierkegaard. Começou a falar quando saímos de Juiz de Fora, "Ki...Ki...Ki..." e só completou o nome do autor dinamarquês em Barbacena, uns 80 quilômetros adiante". Além da gagueira, ele e a esposa (uma cantora de ópera) não gostavam de deixar sozinhos em casa os amados cães e gatos ("Eh-eh-eu nã-nã-não tenho a me-me-menor dú-vida de que-que-que eh-eh-eles sã-sã-são me-me-melhores do-do que-que os se-se-seres hu-hu-humanos", recorda Sérgio Augusto).

Por essa insociabilidade, os contemporâneos de Otto Maria Carpeaux perderam a chance de conviver com uma mente abençoada. Ganhou a posteridade, que herdou um legado prolífico e luminoso.

O que Carpeaux escreveu sobre:

Kafka: "A incomensurabilidade do mundo material e do mundo espiritual - eis a atmosfera de Kafka. A ordem do Universo está perturbada quando espíritos aparecem no mundo da matéria; nisso, todos concordam. Conforme Kafka, 'só o mundo espiritual existe; o chamado mundo material é a encarnação enganadora do Demônio' - quer dizer, a ordem do universo de Kafka está perturbada porque corpos e objetos materiais aparecem entre os espíritos. Neste sentido, as ruas e casas das nossas cidades estão povoadas de espectros, dos quais os limpa-chaminés são os mais tremendos. Todos nós estamos misteriosamente transformados assim como Gregor, na Metamorfose, está transformado num inseto gigantesco e horroroso. Conforme aquela 'interpretação teológica', a Justiça mais injusta (no Processo) e a burocracia mais mesquinha (no Castelo) seriam transformações de executores da ira divina contra a humanidade culpada (...) O Deus de Kafka seria o próprio Diabo. Mas, no fundo, é só um gigantesco limpa-chaminés".

Schubert: "As melodias de Schubert são em geral de simplicidade diatônica; aí está a parte espontânea, instintiva de sua arte. Mas, para compreender-lhes bem o sentido poético, é preciso dar atenção ao acompanhamento ao piano. No lied Despedida, que fala de uma despedida para sempre e de cavalos que esperam fora da porta - talvez sejam cavalos fúnebres -, o acompanhamento é uma pequena sinfonia de pateados impacientes e acordes sinistros, culminando numa dissonância audaciosa (lá menor e mi bemol maior ao mesmo tempo). Acordes assim, 'moderníssimos', oscilando entre menor e maior, são freqüentes na música de Schubert; transformam-lhe a melancolia comum dos bêbados em angústia demoníaca. Cai a noite e a gente desce daquelas colinas, procurando no escuro a cidade iluminada. Canções alegres perturbam, então, o silêncio dos bosques; mas o bêbado está em perigo de perder o caminho. Para Schubert, a noite significa profundidades noturnas, demoníacas, da obsessão".

Vermeer: "O nome de Jan Vermeer van Delft é caro aos amigos da pintura. É verdade que esse mestre holandês da segunda metade do século XVII não possuía a profundidade religiosa de Rembrandt; basta comparar os apóstolos de Emaús deste último - a luz mística em torno da cabeça do Cristo, incendiando as tristes trevas que envolvem os apóstolos proletários - com o pobre quadro, no Museu Boymans, em Rotterdam, em que Vermeer representou a mesma cena, transformando-a em ceia de três camponeses triviais. Tampouco sabia o pintor de Delft conferir aos seus quadros o esplendor dos mestres da Renascença: estes transfiguraram os homens em personagens mitológicos, enquanto a deusa Diana de Vermeer, no Mauritshuis, é uma senhora insignificante, tomando banho de pés. Vermeer não era da estirpe dos lucíferes mediterrâneos nem daquela outra de profetas nórdicos. Só era pintor, só. Pintou cenas da simples vida caseira: moças, uma cozinha, a porta da rua".

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