Guerrilha Psíquica - Luther Blissett
(Conrad)
por Nailana Thiely

Há quem continue achando que internet é só abobrinha e as novidades no meio sejam cidades virtuais e blogs. Por falta de informação, falta de criatividade ou preguiça, estas pessoas não percebem que a internet atualmente é o melhor suporte para experimentações artísticas, midiáticas, intectuais e humorísticas. O marasmo digital não faz parte apenas do cotidiano daqueles que raramente têm acesso a internet, este alerta serve também para os "descolados" que só caçam novidades digitais em revistas como a Wired ou a Mondo 2000. 

O projeto Luther Blissett pode ser considerado um dos melhores exemplos de interseção entre tecnologia, teoria crítica, arte e política radical. No Luther Blissett Project, decidiu-se usar  o potencial da nova mídia e seu impacto iminente sobre aquelas tradicionais com a finalidade de lançar um novo "produto", uma mercadoria intangível, imaterial: criar um mito de luta, comum a todas as comunidades rebeldes. 

Antes de simplesmente fazer contra-informação e demonstrar como QUALQUER UM poderia obter as manchetes desejadas, o Projeto Luther Blissett confirmou que cada um poderia construir o "furo" do jornal de amanhã através dos mecanismos de deformação das notícias e desinformação dos jornalistas. Tudo isso era muito simples e começou com um convite absurdo, lançado em meados dos anos 90, na Itália: "Qualquer um pode ser Luther Blissett, basta adotar o nome Luther Blissett!". 
   
Isso mesmo. Qualquer um poderia ser Luther Blissett, em qualquer hora e em qualquer lugar. Aconteceu, então, um dos melhores exemplos de clonagem subversiva do século XX: começaram a acontecer aparições simultâneas de Blissett em diversos cantos da Itália, Alemanha, Espanha, EUA, Inglaterra, Portugal e Brasil. Alguns humilhavam a mídia com falsas notícias como o caso do desaparecimento do Luther Blissett ilusionista. Alguns festivos eram presos e na frente do juiz todos confirmavam: "Meu nome é Luther Blissett". 

A Dazed & Confused tentava traduzir: "Luther Blissett foi um jogador de futebol muito bom. Luther Blissett é um poeta. Luther Blissett é um pensador. Luther Blissett é um romancista, um astro do rádio, um filósofo. Um prankster, um punk, um dadaísta, um ativista de esquerda e um neomítico herói do povo. Luther Blissett é, literalmente, uma lenda". Outros (ou os mesmos?) Luther Blissett lançaram "Q", um best seller de tamanho sucesso na Europa que correu o boato que aquele Luther Blissett seria na verdade o próprio Umberto Eco. Houve também um Blissett brasileiro que criou uma maneira de potencializar o uso subversivo dos arquivos sonoros da internet. 

O mais curioso é que não foi necessário criar nenhum "comitê central" para apropriação do nome. Decidiu-se criar um mito utilizando lendas urbanas, técnicas de intelligence e estratégias publicitárias, se desviando de tudo isso com o intuito de criar uma reputação, uma personagem - no começo, virtual, depois, cada vez mais real. Aquele personagem cumpriria ações de guerrilha contra a cultura enfastiada de seu tempo e a agrediria. 

Antes de colocar em crise cada preconceito e cada lugar-comum sobre mídia, ativismo, identidade, direitos autorais e trabalho intelectual, Luther Blissett também colocou em crise o humorismo clássico. Sim, porque os vários Luther Blissett realmente se divertiam, cobrindo de ridículo instituições federais. 

Na série "Homicídios Luther Blissett" espalhou-se a notícia do suicídio de Andrea Ruga, contador de 27 anos, que se mata em 23 de outubro de 95 por causa de seu nome, da Identidade Única imposta. Andrea Ruga teria sido vítima de um mecanismo absurdo de criminalização paterna, porque seu nome e sobrenome eram idênticos aos de um famigerado membro da máfia da Calábria. Nascidos e crescidos na mesma cidade, nem de longe eram parentes. 

O suicida Andrea Ruga estaria cansado dos dramas de hotéis na hora de exibir seus documentos, cansado das perseguições e eternas blitzes. Em protesto, suicidou-se, lançando a campanha pela Abolição do Nome Próprio. 

Antes deste episódio, a redação do programa de TV italiana "Quem o Viu" (Uma espécie de Linha Direta da Globo), se interessa por um comunicado da Agência de Notícias da Itália (Ansa), que denuncia o desaparecimento de um artista inglês, em Friuli, um tal de Harry Kipper. O pedido viria de um grupo de Bolonha, identificados como amigos de Kipper. "Quem o viu" envia uma trupe para Bolonha, em seguida para Údine, entrevista os amigos de Kipper que reconstituem etapas de seu percurso e descrevem seu caráter. Enfim, a trupe da televisão vai para Londres, onde encontra os amigos ingleses de Kipper e filma os lugares frequentados por esse personagem extravagante, sua casa, suas obras. O material filmado é editado e preparado para ser transmitido. No último minuto, um telefonema providencial à embaixada britânica e uma busca de cartório direcionada forçam os responsáveis pela transmissão a parar tudo. Harry Kipper nunca existiu, tudo era falso, uma fraude atuada entre Bolonha, Údine e Londres, de pessoas unidas pelo uso da mesma sigla: L.B. Ninguém havia se preocupado em apurar o comunicado antes de enviar a equipes a 3 localidades diferentes. 

Algumas das peripécias sérias e outras sérias ma non troppo podem ser encontradas no livro Guerrilha Psíquica, lançado em janeiro deste ano pela Editora Conrad e assinado por ninguém mais que Luther Blissett. O nome estava muito gasto e houve uma espécie de suicídio coletivo dos Luther Blissett em 2000. Quem ler o livro e quiser saber um pouco mais do que foi produzido pelo projeto de 1994 a 2000, pode baixar os arquivos LBP no site www.lutherblissett.net . Os textos do site estão na versão original, em inglês e italiano.