Dez

por Drex
cartasdemaracangalha.blogspot.com
21/07/2003

Vamos ser sinceros - qual seria sua reação ao ser convidado para ver um filme iraniano ambientado inteiramente dentro de um automóvel? Posso dizer que, ao ter a oportunidade de ver Dez (Ten, 2002), o último filme de Abbas Kiarostami, fiquei, no mínimo, relutante. Como nunca havia visto um filme iraniano, o que me veio a cabeça foram as descrições e comentários típicos que se ouve por aí a respeito desse tipo de cinema: um filme lentíssimo, com cenas arrastadas e contemplativas, recheado de paisagens inóspitas, mulheres reprimidas e lamentos sonolentos. A curiosidade foi maior, porém, e resolvi encarar o convite. Não sem antes tomar dois cafés expressos pouco antes da sessão, só para me precaver.

Então, numa grata surpresa, Kiarostami me proporcionou um daqueles melhores pequenos prazeres da vida. O prazer de se ter as expectativas decepcionadas, só que para melhor. É claro que Dez é um filme bastante experimental, diferente e inusitado. Mas, ao mesmo tempo, conseguiu derrubar cada um dos os meus preconceitos diante de um cinema iraniano que eu nem sequer conhecia.

A primeira a cair foi a expectativa de uma trama tediosa. O título do filme vem justamente do número (dez) das pequenas passagens narradas, focalizando sempre o cotidiano de uma mulher divorciada, todas ambientadas dentro do automóvel guiado por ela. Apesar de possuir somente dois ângulos de câmera (um focando o banco de motorista e outro o do passageiro), Dez não te dá nenhuma oportunidade para se entediar. Há sempre alguma emoção na tela e, pela sinceridade com que são apresentadas, é impossível não se envolver com elas.

Impossível, por exemplo,  não sentir desconforto e irritar-se frente ao filho da tal mulher divorciada, um pentelhinho de 8 anos de idade que, revoltado com o divórcio dos pais, não pára de acusar a mãe de abandono e refletir o discurso machista de seu pai. Impossível também sair ileso ao choro da amiga abandonada pelo noivo e suas angústias quando ao futuro. Sobretudo, não dá para não se sentir bem ao perceber a esperança e a solidariedade que a protagonista ainda consegue sustentar, mesmo imersa numa situação aparentemente sem saída.

O segundo preconceito derrubado é um pouco mais amplo. É a própria visão que eu possuía da cultura e da condição social iraniana. Não deixa ser estranho perceber que, apesar da globalização, da Internet e da TV a cabo, ainda imaginamos esses lugares distantes de uma forma folclórica e caricata. Da mesma forma que os gringos imaginam o Brasil repleto de sucuris e macaquinhos pelas árvores, confesso que também imagino ser impossível viajar à Nigéria, por exemplo, e não ser flechado no meio de uma guerra tribail. E, da mesma forma, também vejo qualquer um dos países do Oriente Médio como uma terra arrasada, dividida entre xeiques milionários e fanáticos religiosos se flagelando insandecidamente.

E aí Kiorastami me mostra uma cidade iraniana que é igual a qualquer outra grande cidade do terceiro-mundo. E apresenta uma estória completamente urbana, com pessoas vivendo as mesmas situações e tendo os mesmos problemas que eu ou você podemos ter. As mulheres iranianas também dirigem, trabalham fora e se divorciam. Os maridos delas também são machistas e inseguros. No Oriente Médio, quem diria, as pessoas também vão à padaria, também levam os filhos à escola, também se sentem culpados por não ir à Igreja. Os pentelhinhos deles, também assistem ao Cartoon Network e exigem que seus papais de classe média consigam uma TV com recepção via satélite. Pode parecer antiquado mas, numa época de CNN e Discovery Channel, o cinema novamente nos apresenta o mundo.

Peculiarmente, caiu também um meu terceiro preconceito: a imagem de que, debaixo daqueles panos, as mulheres iranianas escondiam rostos feios e esquisitos. Mal sabia eu o que esta minha limitadíssima visão estava me fazendo perder: Mania Akbari, a protagonista de Dez, é uma das mais belas atrizes que vi no cinema nos últimos anos. Sem exagero, Mania, além de ótima atriz, expressiva e sensível, é lindíssima.

Depois da queda dos preconceitos, o que fica não é só um filme diferente, mas universal. Abbas Kiorostami, cineasta já consagrado por filmes como Gosto de Cereja, filmou sua estória minimalista em câmera digital, o que ressalta ainda mais sua sincronia com a modernidade do cinema mundial. Mas, no fundo, isso é o que menos importa. Dez consegue demonstrar que suas diferenças, ou seja, ser iraniano e experimental, só o fazem mais interessante. E que, na verdade, por trás desses rótulos, o que importa é perceber que neste mundo imenso somos todos muito mais iguais do que poderíamos imaginar.