Ônibus 174
por Diogo Mattos
diogo@areaweb.com.br
23/06/2003

Jardim Botânico, Rio de Janeiro. 12, de junho de 2000. O Brasil inteiro pára diante da TV. Um homem, após uma frustrada tentativa de assalto, mantém os passageiros de um ônibus como reféns durante uma tarde. Momentos dramáticos até um final trágico: um policial dá dois tiros no seqüestrador, mas erra ambos. O criminoso mata uma refém. Muitos já se esqueceram deste triste episódio da história recente do país. Felizmente, existem filmes como "Ônibus 174" (BRA - 2002) para colocarem o dedo em uma ferida que está longe de ser cicatrizada. 

O seqüestrador era Sandro do Nascimento. Aos 6 anos, ele presenciou a mãe grávida ser morta a facadas. Depois disso, fugiu da casa da tia e se tornou um menino de rua. Foi um sobrevivente da chacina da Candelária (lembra-se?). Viciou-se em drogas, e participou de assaltos para comprar tóxicos. Chegou a ser internado em instituições para menores, como a Febem. Saindo de lá, foi adotado por uma mulher na favela Nova Holanda. Já maior de idade, chegou a ser preso, mas fugiu. Aos 21 anos, após seqüestrar o ônibus que realizava a linha 174, foi capturado pela polícia e morto por asfixia, já imobilizado, dentro do camburão. 

O diretor José Padilha opta por intercalar o desenrolar do seqüestro com a história da vida de Sandro. E ainda há depoimentos de familiares e amigos de Sandro, meninos de rua, policiais que participaram da ação, uma assistente social que trabalhava com as crianças da Candelária e de um ex-secretário de segurança do Rio. O que o diretor quer não é defender o criminoso. Também são mostrados os defeitos de Sandro, os crimes que cometeu, seu envolvimento com drogas. Ao traçar o perfil de Sandro, mostrando sua história desde o início, o que o diretor mostra é que aquela tragédia que ocorreu era inevitável. E, se a sociedade continuar a "fabricar" e excluir tantos meninos e meninas de rua, outros Sandros irão aparecer por aí. E ninguém vai querer estar no ônibus 174 da vez quando outros deles entrarem em ação. 

O caso do seqüestro do ônibus mostra também outro grande problema brasileiro: o total despreparo da polícia. Um policial diz que "toda a falta de capacitação, treinamento e equipamentos de uma polícia ficam evidentes em uma ação de seqüestro". Vemos ali uma sucessão de erros constrangedora, com policiais se comunicando por gestos, excesso de negociadores, falta de controle do tráfego de repórteres no local e uma misteriosa autoridade dando ordens por telefone e impedindo que a solução mais adequada segundo os especialistas entrevistados - a morte do seqüestrador por atiradores de elite - fosse tomada. Isso sem contar com a amadora conclusão com que tudo se resolveu. Um policial despreparado atirando em Sandro e errando os dois disparos, e o sufocamento absolutamente desnecessário do bandido, já imobilizado (os policiais que mataram Sandro foram absolvidos depois). Preocupante saber que aquela é aquela mesma polícia é a responsável por manter a nossa segurança. 

Ao ser imobilizado e levado para o camburão, uma multidão de curiosos que acompanhavam o caso tentou linchar Sandro. No dia seguinte, uma rádio fez uma pesquisa sobre o que a população achou da ação da polícia. E a maioria esmagadora dos ouvintes concordou com o sufocamento do criminoso. É muito mais fácil agir assim. Daí a importância e a coragem de se fazer este filme. José Padilha já merecia ser aplaudido só pela iniciativa. Mas não é só a premissa que é interessante, o resultado final é um documentário de primeira. Desde a primeira cena, uma longa e belíssima tomada aérea que passa por boa parte da cidade do Rio de Janeiro, até o fim, não menos belo, embora trágico, com o enterro de Sandro sendo acompanhado apenas por sua mãe adotiva, precedido de um depoimento de sua tia, que dizia não ir ao enterro com medo de sofrer retaliações depois. 

Nas palavras de uma das reféns, Sandro foi a maior vítima da história. O que não deixa de ser verdade. Sim, culpado por um seqüestro, um dos crimes mais abomináveis que existe, e por matar Geíza, uma inocente professora que não tinha culpa de nada. Mas vítima de um Estado ineficiente, cujas instituições corretivas, tanto para menores quanto para adultos, são na verdade fábricas de criminosos. Vítima também de uma sociedade que não dá a menor importância para a criança abandonada – constatação muito bem ilustrada em cenas que mostram crianças fazendo malabarismos em frente a sinais de trânsito, enquanto os motoristas fechavam os vidros dos carros e olhavam para outros lados. 

É impressionante o poder de "Ônibus 174". O filme é – na falta de uma expressão melhor, vai um lugar comum mesmo – um soco no estômago do espectador. Tristeza, espanto, vergonha, revolta são alguns dos sentimentos que o filme desperta em cada um de nós. Nunca vi um silêncio tão grande na saída de um cinema como neste filme. Não há o que dizer depois de levar um tapa na cara como este. Quando for assistir ao filme, vá precavido: provavelmente você ficará emocionalmente arruinado no mínimo pelo resto do dia. Mas não por isso "Ônibus 174" deve deixar de ser visto. Ignorar a realidade é muito mais prejudicial. 

Não gosto de terminar palpites recomendando filme tal, parece jabá. Mas é impossível não falar sobre "Ônibus 174" sem dizer: assista ao filme. Descubra não só que se realizam documentários no Brasil – e eles são bons. Não se trata apenas cinema, o filme vai muito mais longe que isso. O mais importante é que ele nos faz lembrar que, embora a gente não queira enxergar, há milhares de pessoas querendo deixar de ser invisíveis, querendo ser tratadas como pessoas ao invés de problemas. E que ignorá-los é o pior caminho.