Garotas do ABC
por Marcelo Costa
Fotos: Lucas Barreto

maccosta@hotmail.com
27/08/2004

"Nasceu no subúrbio operário de um país subdesenvolvido. Apenas parte da massa de uma sociedade falida".
Subúrbio Operário, Garotos Podres, 1988.

A visão tensa e pessimista que o grupo punk Garotos Podres exibia de sua região natal, o Grande ABC paulista (Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema), em 1988, ganha profundidade com o novo filme de Carlos Reichenbach, Garotas do ABC.

Apesar de ser massa, de ser um subúrbio operário, de viver em uma sociedade fálida, as pessoas que vivem nesta região (assim como em qualquer outra deste Brasil tão surrado) são pessoas comuns como eu, você, a Prefeita de São Paulo e os moradores de rua. São pessoas que sonham, choram, dormem, acordam. Retratar este cotidiano poderia soar banal, mas Reichenbach soube contar o óbvio sem apelar para obviedades.

Aurêlia (Michelle Valle) é uma operária de uma empresa de tecelagem. Seu pai é das antigas: não gosta que ela chegue tarde e acredita que o ato da refeição é sagrado. Suas amigas são, quase todas, do trabalho. Aurêlia sonha com o cantor Sam Ray (uma invenção à la Marvin Gaye) e com os músculos de Schwarzenegger. E com o namorado, Fábio (Fernando Pavão). É neste romance que o filme divide seu foco. De um lado temos a garota negra, operária. Do outro, o rapaz branco, forte e com pensamentos fascistas. É do embate entre estas duas histórias que Garotas do ABC se torna grandioso.

A bela morena namora o rapaz branco sem que o pai saiba. O rapaz branco é piada em seu circulo de amigos por "gastar tempo" com uma garota negra. O fascismo surge na tela na pele de Salesiano (o excelente Selton Mello), um cara que, se pudesse, expulsaria nordestinos e negros de sua região. O perigo de assunto tão delicado (que poderia descambar para a apologia) é tratado com o máximo de cuidado por Reichenbach. O release entregue a imprensa deveria acompanhar o convite do cinema, para melhor esclarecimento, mas mesmo assim, o que se vê a tela é o exemplo da barbárie que move pequenos núcleos da sociedade.

No exato momento em que São Paulo passa por um escândalo sem precedentes com a morte de diversos moradores de rua, assassinados durante a noite, Garotas do ABC se mostra urgente. É o filme certo, no momento certo. Discute o preconceito e a intolerância de forma racional, sem apelar para discursos demagogos. Desmonta o fascismo e o integralismo mostrando na tela um País de mestiços. Com muito orgulho. Reichenbach procura mostrar que existe beleza (e amizade) em um mundo de jovens operárias tentando viver com dignidade em meio à violência da periferia. Para isso, o cineasta une o pessoal ao social, o amor com a política, a amizade com a dominação. Cabeças que sonham, cabeças que pensam e cabeças que rolam. Tudo dentro de um excelente filme.

Site oficial Garotas do ABC