Extermínio
por C. Lopes
clopes@areaweb.com.br
28/07/2003

E quando tudo dá errado? E quando o mundo cai na sua cabeça? E quando você percebe que não tem ninguém ao seu lado, ninguém em quem confiar? 

Estamos em 1996 e o diretor britânico Danny Boyle é o rei do underground cinematográfico, seja lá o que for isso. Seus dois primeiros filmes, "Cova Rasa" – um suspense esperto do tempo em que o tema "grupo de amigos que escondem um cadáver" ainda não havia se tornando praticamente um gênero cinematográfico - e "Trainspotting - Sem Limites" – uma longa do tempo em que acompanhar o cotidiano de jovens junkies ainda era engraçado - são idolatrados. A imprensa metida a alternativa e o público indie trata o cineasta como um gênio, o último representante do cinema "alternativo" contra o esquemão hollywoodiano. Depois que o roteiro deste último foi indicado ao Oscar, era natural que Hollywood assediasse Boyle. O primeiro filme americano dele foi o fraco "Por Uma Vida Menos Ordinária", uma comédia romântica bestinha do tempo em que a presença de Cameron Diaz em uma comédia romântica bestinha era novidade. Em seguida foi a vez do projeto mais ambicioso do diretor, "A Praia" – e, esse sim, recebeu toda a execração pública que o anterior merecia. O filme está longe de ser uma maravilha, mas também não é o desastre que pintam. Apesar disso, o mundo caiu na cabeça de Boyle. Seus fãs viraram facilmente seus detratores, seu amigo Ewan McGregor ficou puto por não ter participado de "A Praia" e disse que nunca mais trabalharia com o diretor (nada que a continuação de "Trainspotting", que está sendo planejada, não cure...), o filme, tratado como superprodução que não era, não rendeu o esperado. Tudo deu errado. 

Estamos em 2000 e alguma coisa e Jim (Cillian Murphy) acorda de um coma. O hospital está deserto. Jim vai pra rua, e o centro de Londres também está deserto. Toda a cidade está deserta. Após ser salvo do ataque de zumbis por Selena (Naomi Harris) e Hank (Noah Huntley), ele descobre o que está acontecendo: um vírus foi liberado por ativistas ambientais de um laboratório de pesquisa, espalhando-se rapidamente. A cidade teve que ser evacuada. Quem era contaminado e não morria se transformava em morto-vivo, como os que atacaram Jim. O mundo cai na cabeça do rapaz. Seus pais e amigos estão mortos. Uma pessoa infectada deve ser morta em 20 segundos, não importa se é seu pai, sua mãe, seu irmão. Sendo assim, em quem confiar? Jim e Selena encontram Frank (Brendan Gleeson) e sua filha Hannah (a gracinha Megan Burns, uma espécie de clone da atriz Anna Paquin, a Vampira de "X-Men 2"), e eles se juntam para tentar sobreviver. Mas sobreviver pra quê? O que fazer quando tudo dá errado? 

Ok, "Extermínio" (28 Days Later - EUA, 2002), o novo filme de Danny Boyle que conta a história de Jim, não é uma metáfora do período de ostracismo que o diretor vivenciou. Mas tem um jeitão de recomeço (e todas as dificuldades inerentes a ele) adequado ao retorno do cineasta depois do fracasso de "A Praia". Se os personagens procuram um novo lar, Boyle volta ao seu (a Inglaterra) e suas origens. O filme tem o clima claustrofóbico próximo ao de "Cova Rasa", sua estréia na direção. O começo do longa é exemplar: a liberação do vírus, bem filmada; Jim acordando na cama de hospital em total silêncio. À medida que sai à rua e percebe que algo de muito grave aconteceu, a trilha sonora de John Murphy começa a ser ouvida, a princípio em baixo volume, com a batida mais devagar, até descanbar em uma música rápida e ensurdecedora. O bom uso da música e as invenciones visuais e sonoras sempre foram marcas de Boyle. Só que, em seus filmes americanos, elas soavam exageradas ou deslocadas. A história de "Extermínio" também não pede tais experimentações, e o diretor usa a trilha sonora e as angulações criativas sabiamente, criando um clima de tensão e desconforto cada vez maior. 

E é essa a chave: mais do que sustos, "Extermínio" é um filme de climas, sensações. Medo pela constante ameaça. Nojo pelas mortes e pelo aspecto dos zumbis. E também melancolia. Ao contrário de outros filmes pós-apocalipiticos, a ação se passa poucos dias depois que a tragédia ocorreu. No lugar de personagens já calejados, acostumados em viver daquele jeito, temos pessoas se adaptando à situação, tendo claro na memória como eram as coisas antes. Estranho como, em filmes de terror, o drama raramente é explorado. Claro, há gritos, berros, choros convulsivos que fazem o nariz escorrer, mas não drama, emoção. Só histeria. Por apresentar a reação dos personagens, como eles se relacionam entre si e com a idéia do fim da humanidade, o filme ganha mais alguns pontos. 

A opção por realizar o filme em vídeo digital não parece ter sido somente orçamentária, mas também estética. Todo o longa tem um aspecto tosco e cru (especialmente nas seqüências mais violentas), bastante adequado ao que está se passando na tela. O trabalho de câmera não cai na armadilha fácil dos filmes feitos neste formato, com tomadas "sacolejantes", em que mal dá pra se perceber o que está acontecendo, e baixa qualidade da imagem. O efeito "Bruxa de Blair", quando parece que a câmera está sendo operada por um epilético em plena convulsão, é bem usado, nos momentos certos, gerando adrenalina ao invés de confusão (como acontece normalmente). E a iluminação e a fotografia do filme, apesar de manterem sempre o aspecto granulado, são bastante versáteis, adequando-se ao clima da cena – destaque para a cena da chuva, mais para o final. 

A tosqueira estende-se também ao elenco - Cillian Murphy, o protagonista, é um magrelão muito do esquisito – e à forma quase mambembe em que o filme foi feito – com o orçamento ínfimo de U$ 8 milhões, as cenas em que Londres aparece deserta tiveram que ser gravadas no domingo de manhã, com a equipe de produção pedindo aos poucos carros e pedestres que passavam pelas locações àquela hora que esperassem um pouco. Mais básico, impossível. 

"Extermínio" também é uma volta às origens de Boyle por levar às últimas conseqüências o subtexto presente em seus filmes anteriores (com exceção de "Por Uma Vida Menos Ordinária", sendo este um dos motivos do filme ser o mais fraco de sua carreira), a instabilidade do caráter humano. Resumindo: quando o bicho pega, mermão, é cada um por si. Amizades, relacionamentos, promessas e ideologias são facilmente esquecíveis, seja em um grupo de amigos criminosos ("Cova Rasa" e o final de "Trainspotting"), na sociedade perfeita ("A Praia") ou entre pessoas fugindo de zumbis canibais (o caso em questão). 

Claro que isso faz com que a mensagem, principalmente do meio pro final, se torne forçada e exagerada. Além disso, o ótimo Brendan Gleeson é subaproveitado, e os vários furos no roteiro quase estragam a diversão. Quase, porque o saldo final é bastante positivo. Nada como um diretor que aprende com seus fracassos, e volta àquilo que sabe fazer. Quando tudo dá errado, quando o mundo cai na sua cabeça e não dá pra confiar em ninguém, o jeito é começar de novo. É isso que Danny Boyle faz – com competência - em "Extermínio".