"O Expresso Polar"
por Marcelo Miranda
Fotos - Divulgação

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02/12/2004

Todos os anos, é tradicional que o cinema americano despeje uma superprodução temática de Natal. A de 2004 é O Expresso Polar, animação dirigida por Robert Zemeckis que está sendo mais comentada pela forma como foi feita do que pelo próprio conteúdo. Ou não: alguns críticos vêm dizendo ser esta uma fábula "inesquecível", conto de fadas que "já nasceu clássico" e outros elogios superlativos. Um exagero, se o filme for visto com mais atenção.

A história, inspirada em livro de Chris Van Allsburg, fala de um garotinho em crise de fé com o Natal. Ele acredita no Papai Noel, mas está começando a "desacreditar". É quando, na noite mais esperada pela criançada durante o ano todo, pára em frente à porta da sua casa um imenso trem, de onde sai estranho maquinista. O menino é convidado a viajar ao Pólo Norte, junto a outras crianças, para conhecer o bom velhinho e, quem sabe, recuperar a crença na magia natalina.

Tudo muito bonito, literalmente: a técnica de captura de movimento (ou "captura de performance", como vem sendo chamada), implantada no Gollum de O Senhor dos Anéis, agora anima um bando de crianças, renas, lobos, bilhetes de trem e mais infinidade de detalhes – principalmente Tom Hanks, aqui na pele (ou no traço) de cinco personagens. É realmente de encher os olhos, mas ainda está aquém do próprio Gollum, que soava extremamente mais real e menos "borrachudo", como aparentam as criações de O Expresso Polar. Muito bem definidos por um crítico de grande jornal brasileiro, parecem mais personagens de vídeo-game.

O roteiro segue a fórmula consagrada (e batida) do discurso pela importância de se acreditar no Natal, de se ter esperança, de simplesmente crer (e a palavra "crer" é tão pronunciada e mostrada que começa a incomodar). Não que isso seja velho ou não mais funcione, mas a forma como Zemeckis embala esse produto é tão "certinha" e tão cheia de certezas de que apenas fé pode salvar o ser humano que fica difícil engolir sem ao menos questionar. Claro, a música alta, os rostos animados com carinhas de tristeza ou alegria, o carisma do maquinista, tudo isso serve de nuvem de fumaça para o espectador não parar para pensar o quanto vazio é o discurso de Zemeckis. Tentativa de ser inocente num mar de podridão que assola o mundo? Difícil pensar nisso num filme que custou U$ 160 milhões e parece ter sido feito quase apenas para mostrar a capacidade de se fazer uma animação totalmente digital com público-alvo infantil.

Sem falar no garotinho pobre. Um mistério, esse garotinho pobre. Sua primeira aparição em cena é quando o expresso passa em frente à sua casa e, com ajuda do protagonista, ele consegue subir a bordo. Depois, isola-se no vagão de trás. Fica longe de boa parte da ação. Mais à frente, vai participar de um momento musical do filme, junto com outras duas crianças menos abastadas. Mais ao fim, ficará deslumbrado com o primeiro presente recebido em toda a sua vidinha medíocre. Por fim, ao encontrar Papai Noel, que promete entregar presentes pessoalmente a uma das crianças, é cutucado no ombro e ouve do barbudo: "você fez amigos. Esse é o presente mais importante". Isso para, em seguida, sair todo destrambelhado com uma penca de agrados para as crianças do mundo.

Ora, então o que ele dizia ao garotinho pobre era basicamente o seguinte: "que bom que você conseguiu amigos, então você não precisa de presentes. Contente-se com o que tem e dê-se por satisfeito". Minutos depois, na hora de embarcar de novo no trem, o condutor mostra ao pobrezinho uma palavra: "consinta", ou "aceite", ou algo parecido. Quase dizendo "fazer o que, meu rapaz? Você é pobre e não ganha nada, paciência".

Desculpem a descrição detalhada, mas é fundamental para mostrar certa visão elitista que O Expresso Polar contém no seu texto. Nem é de forma sutil. É quase explícito. Se considerarmos ser este um filme infantil feito para crianças da classe social do protagonista, razoavelmente bem colocada na escala de renda (ou seja: que pode pagar para ir ao cinema), torna-se algo delicado. Afinal, uma historinha aparentemente inofensiva como essa traz em si uma gama gigantesca de valores morais, que, mesmo discretamente estarão moldando comportamentos futuros. E para um filme que tenta defender uma idéia de crença e fé através da inocência e ingenuidade, esnobar os menos favorecidos não parece nada desprezível.

De qualquer forma (e discursos à parte), sejamos justos: O Expresso Polar diverte, deve encantar a molecada e traz belíssimas seqüências. Só não se tornará um filme lembrado por si só, mas pelas técnicas ditas revolucionárias que oferece na sua concepção.


Site Oficial do filme O Expresso Polar