Matérias Antológicas

"Dogville" estimula a reflexão

por Hector Babenco
Especial para o Estado de São Paulo
30/10/2003

Não sou do tipo do diretor que não vê o filme dos outros com medo de se deixar influenciar. Eu vejo, mas confesso que são raros os filmes que permanecem muito tempo comigo. Uma das exceções é justamente o filme de Lars Von Trier, Dogville, que encerra hoje a mostra. Vi Dogville após o Festival de Cannes, em Paris. Ambos concorríamos à Palma de Ouro, mas na correria de Cannes não tive tempo de ver o filme de Lars Von Trier na Croisette.

Em primeiro lugar quero dizer que Dogville me proporcionou uma emoção muito especial. O filme permaneceu comigo. Às vezes, me surpreendo pensando nele, como uma coisa já entranhada no meu imaginário. Tenho a impressão que Von Trier fez o que nenhum outro diretor havia feito antes. Todos ensaiamos nossos filmes, mas eu tenho a impressão que ele preferiu ficar só no ensaio, sem necessidade de concluir o trabalho, pelo menos no formato de dramaturgia tradicional a que estamos acostumados. É como se ele tivesse ficado só no rascunho, sem sentir necessidade de colocar paredes e tetos na sua cidade imaginária. Dogville está para o cinema como a poesia não rimada para a literatura.

Lars Von Trier partiu de uma história aparentemente convencional, que tratou de forma teatral, como se fosse uma fábula. Na ossatura dessa fábula, concretizou sua vontade de ser profundo e visceral. Se tivesse vestido seus personagens com plumas, se tivesse enfeitado sua história, tenho a impressão que terminaria por banalizá-la. Sabendo disso, preferiu não correr o risco.

Reduziu seu raconto ao mais essencial, justamente para torná-lo mais denso.

Não é qualquer diretor que consegue isso. É preciso um talento particular.

Von Trier fez um filme sobre a construção da América discutindo a contribuição da Igreja luterana para esse processo. Discute temas como o processo de acumulação capitalista na sociedade americana. Para os protestantes, baseia-se em preceitos morais e éticos muito rígidos, mas eles realmente acreditam no lucro como um direito divino, adquirido pelo trabalho. Partindo dessa base, Von Trier consegue expor toda a hipocrisia dessa sociedade. Dogville cria um microcosmo social, como Carandiru.

O filme conta a história da complicada relação entre um pai e sua filha. Ela é adorada na comunidade, escravizada, usada e violentada e tudo isso ocorre na maior discrição, no seio de uma sociedade formada por gente de bem. É o ponto que me parece mais importante. Não fosse assim, Dogville perderia sua densidade e poderia virar uma espécie de caricatura. Perdoem-me o entusiasmo, mas Dogville me parece, acima de tudo, perturbador. As pessoas precisam ir preparadas, sabendo que não vão ver um filme convencional. Toda a dramaticidade de Dogville decorre da repressão sexual que provoca um cataclismo dos sentidos na comunidade, terminando por expor toda a sua carga de repressão. Sou um consumidor fácil, excitado com aquilo que vê na tela. A dificuldade é manter por muito tempo essa excitação. Em geral, ela se esvanece no dia seguinte. A maioria dos filmes que vemos é formada de obras banais. Dogville, não. Espero dos filmes que sejam excitantes, como estímulo para a reflexão, e que me proporcionem prazer estético. Dogville faz tudo isso.

Site Oficial de Dogville