"Cão Sem Dono"
por Marco Antonio Bart
Blog
11/07/2007

Ah, o cinema nacional e suas promssoras jovens atrizes, sempre dispostas a dar (ops) tudo de si no início de carreira. "Cão Sem Dono", nova fita de Beto Brant (em parceria com Renato Ciasca), conta com a estreante Tainá Müller para iluminar a trama sombria de seu roteiro. E mais não me estendo sobre a performance extremamente desinibida da beldade porque, putz, fiquei sabendo que Tainá é namorada de Daniel Galera, autor do romance "Até o Dia em Que o Cão Morreu", que deu base ao longa. Meio constrangedor ficar secando a mina do cara assim, né?

A menção aos predicados de Tainá não é gratuita. Na verdade, sua beleza, em contraste com a existência opaca do protagonista - Ciro (Julio Andrade), o dono do cão sem dono do título - ajuda a definir logo de cara a atmosfera do filme e a personalidade de seu anti-herói. Na primeira cena, ela (ou melhor, Marcela, sua personagem) aparece transando com Ciro. No dia seguinte, a moça sugere que eles voltem a se encontrar. Mas ele não demonstra muito interesse. Ele é feio, largado, aparentemente pobre. Ela é linda, bem cuidada, aparentemente bem de vida. Ainda assim, Ciro não parece se dar conta da dádiva que tem nas mãos. (Talvez por isso mesmo Marcela tenha se interessado por ele, como só acontece na vida real.) Alheio à beleza, alheio aos confortos materiais, alheio à vida, enfim: eis o protagonista de "Cão sem Dono", e essa sensação de indiferença domina o longa.

Ciro não tem emprego fixo, vive em um apartamento praticamente vazio e não tem amigos. O cão, que ele achou na rua, não é seu (ele se diz “amigo” do cachorro, não seu dono). Ciro é que é, na verdade, o próprio cão sem dono. Marcela, seu único elo com a beleza - com a vida, enfim - quer botar uma “coleira” metafórica nele, mas sua indiferença (não só para com ela, mas com o mundo, enfim) os afasta. Até, naturalmente, que Ciro perceba que Marcela é tudo que há de bom em sua existência sem perspectiva. Mas até aí, pode ser tarde demais… O afastamento da Marcela joga o rapaz no fundo do poço. Do qual, afinal, só resta a subida. O filme ganha novas cores e um “arejamento” visual nessa redenção do protagonista, que parece acordar para a vida. Ou não? O final, como o começo e o meio, fica entreaberto.

Junto a outros cineastas, como Philippe Barcinski ("Não por Acaso"), José Eduardo Belmonte ("A concepção") e Roberto Gervitz ("Jogo Subterrâneo"), Beto Brant quer traduzir em imagens a gastura existencial da vida nas cidades grandes. "Cão sem Dono" vai além da tradução, contudo. Seco, sem firulas ou inferências poéticas, recria essa angústia urbana de forma mais eficaz, e ainda a reveste de uma inesperada universalidade. O filme se passa no Sul do Brasil, mas poderia se passar em qualquer outro lugar; além dos sotaques e de algumas vagas indicações geográficas, não há referências explícitas à cidade na qual a ação (que ação?) se desenrola. Econômico, Brant não emprega aqueles planos-chavão que tentam “mergulhar no caos urbano” ou “retratar em imagens a solidão dos grandes centros”. Nada disso. Só interessa a Brant seu personagem central, ele mesmo a própria personificação do caos e da solidão.

A comparação com "Não por Acaso" é inevitável. Barcinski se esforça para construir uma rede de coincidências que forneçam sentido à caótica vida de um punhado de pessoas em São Paulo. E filma tudo isso de uma maneira estudada, plástica, “publicitária” como tantos gostam de repetir. Brant (e Ciasca, e Ciasca…) não quer ver sentido algum, assim como seu personagem principal. Ou melhor, ele não procura sentido, apenas deixa que o sentido atinja o espectador. Em seu quinto longa, o diretor radicaliza a estética sombria e a narrativa elíptica de seu filme anterior, o excepcional "Crime Delicado". Há a sombra da doença sobre o casal (ela some para tratar de um tumor, ele é flagrado fazendo uma endoscopia), mas não se explicita os males que pairam sobre eles. Sabe-se que Ciro leva uma vida boemia, e no entanto vemos apenas flashes rápidos de suas excursões noturnas. Um momento aparentemente crucial da trama - o atropelamento de Marcela - é apenas narrado pela própria, sem mais. A partir dessa opção pelo não-dito e o não-mostrado, podemos inferir uma filosofia: na cidade grande acontece de tudo com todo mundo, mas nem sempre são necessárias testemunhas.

Brant vai além dos outros cineastas citados acima porque conjura uma árida sensação de realismo - através de uma câmera sem firulas, diálogos que soam absolutamente naturais (inclusive se sobrepondo uns aos outros, como em uma conversa de verdade) e atuações no limiar mínimo da expressividade dramática convencional. É um resultado desconcertante e “difícil”, que o diretor nos concede em dose homeopática. O filme é curtinho (80 e poucos minutos), e até nisso cabe ver uma metáfora da brevidade obrigatória das fugazes relações humanas na metrópole. Fugazes, mas calorosas enquanto duram. Desde a entrega nas cenas de sexo até as conversas que Ciro tem com seu pai e com o amigo motoboy (que falam mais que o protagonista, é certo), Brant captura com total propriedade os instantes de intimidade e cumplicidade que o roteiro oferece.

Tá, mas… e o cão? Como dito lá em cima, acho que o cão sem dono do título é o próprio Ciro. Ou que ao menos suas vidas se espelham. Ambos sobrevivem da bondade de estranhos sem firmar laços com ninguém (o cão por falta de opção, Ciro por falta de vontade). A diferença é que Ciro sofre, afinal; tendo visto - através de Marcela - que pode haver algum sentido na vida, ele se desespera ao perdê-la. O cão não sofre ou sofre apenas brevemente: solta um ganido e na próxima cena vemos Ciro enterrando-o, fazendo jus ao título do livro que inspirou o filme. E olha mais filosofia aí: estamos na vida de passagem, impermeáveis à sua beleza, e um belo dia morremos e não há mais significado algum nisso. Mas ao mesmo tempo a morte do cachorro coincide com o retorno de Marcela. Morte e retorno à vida, beleza espantando a melancolia. O cão pode não emprestar humanidade a seu (não-)dono, mas da tristeza por seu fim entrevê-se o renascer de Ciro, numa nota dissonante no conjunto do filme - por seu (relativo) otimismo.