"Caché"
por Marcelo Miranda
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10/05/2006

Platéia em silêncio, o filme começa. Surge a imagem de uma casa, filmada de frente. Algumas palavras são proferidas, mas não aparecem legendas. "Cadê a legenda?", grita um de dentro da sala. "Olha a legenda!", berra outro. De repente, a imagem na tela começa a rebobinar. E o público que lota o Odeon, numa madrugada carioca em pleno Festival do Rio 2005, vai ao delírio. O filme volta a rodar, ainda sem legenda. E a imagem passa a avançar. Novo delírio. "É mais pra trás, é mais atrás!", escuta-se em meio à gritaria.

Essa situação inusitada aconteceu de fato, na sessão de gala de Caché no festival do ano passado. Não poderia haver prova melhor do poder de manipulação das imagens que o austríaco Michael Haneke possui. As gravações que são o gancho narrativo da trama do filme se acoplam aos acontecimentos realmente apresentados pela câmera de Haneke de tal forma que fica impossível saber quando estamos vendo o filme ou as imagens dentro do filme.

Haneke nos tira completamente a segurança que uma imagem costuma provocar, segurança esta tão buscada pela maioria das pessoas num cinema. No caso de Caché, mais que em seus filmes anteriores, o cineasta deixa em estado de pura tensão quem o assiste, não apenas pelo enredo, nervoso por si só, mas por esta brincadeira sádica com aquilo que nos é apresentado. Não se pode confiar no que é mostrado: em determinado momento, vemos um corredor que se revela parte de um vídeo. Minutos depois, vemos o mesmo corredor, sob o mesmo ângulo, mas desta vez descobrimos estar sob o ponto de vista do protagonista. Michael Haneke desmistifica a idéia de que a imagem possa ser algo absoluto e definitivo. Ele engana o espectador sem se utilizar de maiores artifícios. Usa apenas – ironia das ironias – a imagem na qual tanto se busca crer.

Nada disso teria sentido se não houvesse, além da estética, ideologia, ética, por trás desse jogo todo, tão bem controlado pela mão rigorosa do diretor que já nos ofereceu experiências extremas como Violência Gratuita e A Professora de Piano. Em Caché, todo o questionamento em torno das imagens serve para dar vazão aos questionamentos do personagem Georges Laurent (Daniel Auteuil), às voltas com misteriosos vídeos enviados para a sua casa e que tanto vem apavorando a ele e à esposa (Juliette Binoche).

A falsidade do que se pode estar vendo no filme é também a falsidade de um homem que aparentemente não possui falhas. Bastam algumas cenas da porta de sua casa e desenhos macabros mostrando uma criança sangrando pela boca e está dada a situação de tensão – situação esta que em momento algum se mostra realmente concreta, colocando em xeque, assim como as imagens enviadas, a própria natureza malévola do que acontece na vida dos Laurent. Não é à toa que Georges é apresentador de televisão, a criadora de imagens deslegitimadas por excelência.

Nunca fica claro quem, afinal, está gravando e mandando o material. Esse estopim serve, acima de tudo, para trazer à tona a culpa reprimida por Georges de um acontecimento passado. Os vídeos sem sentido são a verdadeira expiação do protagonista em seu papel junto ao empregado argelino que cresceu ao seu lado.

É um tabu tipicamente francês, este em que a Argélia é colocada no centro da discussão, em vista das barbaridades cometidas enquanto o país era colônia. Tema até hoje entalado na garganta da elite francesa e que ganha retoques de sofisticação e provocação nas lentes de Haneke – não interessa a ele realizar um tratado que dignifique as relações entre franceses e argelinos, mas colocar na mesa um prato indigesto que ambos os lados parecem não querer degustar.

Indigestão, aliás, surgida no momento mais forte e chocante de Caché, talvez um dos grandes instantes do cinema nos últimos tempos: o encontro definitivo entre Georges e o antigo amigo. É daqueles segundos que não sairão facilmente da cabeça do espectador, e a reação que provoca é a mostra de como um diretor está com o público nas mãos quando quer (e sabe) fazê-lo. A explosão de violência dessa cena (e não pense em tapar os olhos, porque ela surge tão repentinamente que não dá tempo!) é ao mesmo tempo alívio e mais sofrimento para Georges – e, de quebra, a quem acompanha sua angústia. O plano final não deixa dúvidas: a questão jamais poderá ter uma solução plausível. E a provocação desse mesmo plano, de sua ambigüidade dentro do mecanismo de “enganação” de imagens do filme, é a cereja de mestre de um diretor que consegue usar a genialidade para deixar qualquer um em estado permanente de alerta.


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