Acima do Bem e do Mal
por Marcelo Kbla Orozco

"Os Reis do Iê Iê Iê" reestréia em São Paulo nesta sexta, 2 de fevereiro, como um daqueles mitos acima do bem e do mal que vão interessar sempre, como qualquer reprise de "Cantando na Chuva". O primeiro (e único realmente bom) filme dos Beatles, preto-e-branco, barato, rápido, imaginativo, mudou todo o jeito de se ver a música pop de 1964 em diante. Volta em cópia restaurada, som digitalizado e outras justificativas técnicas em uma época em que uma coletânea de velhos sucessos da banda ainda tem pique para chegar ao primeiro lugar das paradas.

O crédito musical é dos Beatles, o das cenas é do diretor Richard Lester, um bom entendedor do humor nonsense inglês, que tinha feito trabalhos com comediantes como Peter Sellers, mas não tinha dirigido um longa-metragem antes. Essa união rendeu um filme que evitou a saída fácil de seguir a fórmula do filme bobinho para render o máximo antes que o sucesso acabasse.

A quebra é bem representada com o clipe de "Can't Buy Me Love", o meio do filme. Nenhuma tentativa de dublagem ou sincronia de movimentos com a música, nenhuma orquestra invisível acompanhando o personagem que canta uma balada para a amada no meio de um bosque, ninguém sacando violão de repente e começando a cantar sem nenhum propósito em relação à ação do filme. Os Beatles correm por campos ingleses, sobem e descem escadarias, as imagens são bonitas, rápidas - e acaba aí a obrigação de sempre sincronizar a ação na tela com a canção que entra.

O filme foi feito em sete semanas no meio da explosão da chamada Beatlemania e trata disso. Uma versão idealizada do corre-corre e do assédio das fãs. O enredo evita começo, meio e fim e saídas-padrão. Ninguém encontra o verdadeiro amor no final, ninguém faz um show para arrecadar fundos para uma boa causa (tipo viúva falida precisa de dinheiro para seguir com seu orfanato), nenhuma das armadilhas impostas a astros musicais empurrados para frente de uma câmera.

"Os Reis do Iê Iê Iê" tem o humor que costuma ficar em segundo plano quando se lembra de Beatles. Na tela, os Beatles são legais, mas não se fazem de bonzinhos nem santos. Zoam jornalistas, publicitários manipuladores e quem mais aparecer. E há cenas de nonsense que nem seriam filmadas em Hollywood, como John Lennon travando uma guerra rápida para afogar um patinho de borracha na banheira. Um lado lúdico que, infelizmente, não é o lembrado quando é hora de inaugurar o Rock In Rio com pompa e circunstância, com Milton Nascimento, orquestra e coro lacrimenjando "Imagine" como bons crocodilos.

Em 2001, fica ainda mais claro que os Beatles não tinham jeito para atores (Ringo Starr é o que se sai melhor) e, mesmo tendo falas bem próximas dos disparates deles em entrevistas da vida real, falta alguma espontaneidade. Mesmo assim, há canastrões bem mais desastrosos e nocivos.

Na época, um crítico empolgado comparou o quarteto aos Irmãos Marx -exagero, já que cinema não era o terreno dos Beatles (e música não era o de Groucho e cia.). Já outro escreveu que "Os Reis do Iê Iê Iê" era o "Cidadão Kane" dos filmes musicais. Pensando no que havia antes e no que veio depois neste gênero, essa comparação não está tão longe do alvo.

Texto publicado por nosso conselheiro crispiniano no site bacana Elfoco - www.elfoco.com



Curtindo a Vida Adoidado
por Manuela Martini Colla

Eu me lembro perfeitamente.
Sempre recordo uma história sobre John Lennon, que não me deixa mentir. 
Conta a lenda que quando o liverpoodliano mais meigo do planeta ainda era um gurizinho, adorava ir ao cinema com seus amigos. Uma tarde, enquanto assistiam ao mais recente lançamento cinematográfico do Elvis – o título do filme me foge à memória – Lennon percebeu uma coisa que viria a mudar a sua vida, e todo o mundo pop, consequentemente. Quando Elvis aparecia na tela, a maioria das pessoas que estavam no cinema gritavam histericamente e perdiam o controle, subindo nas poltronas, como se pudessem ser vistas pelo Rei do Rock.

‘Taí uma coisa que eu poderia ser’, pensou John. ‘Quero fazer isso. Ser uma estrela de rock deve ser algo muito bom’. 
Mal sabia ele que, alguns anos depois, eram outros milhares de pessoas que se descabelavam ao ver os quatro ingleses mais ingleses da face da terra projetados na tela de cinema. O filme ‘Os Reis do Iê-Iê-Iê’ foi relançado recentemente, o que dá aos admiradores do rock and roll como eu a oportunidade de ver um clássico exibido com todas as pompas a que tem direito. O filme mudou a vida de muita gente. E, na realidade, é raro encontrar alguém que não tenha alguma historinha de vida mesclada com a música do Fab Four.

Eu me lembro perfeitamente.
Na época em que tudo era tutti-frutti e as matinés eram tão disputadas quanto a figurinha do Assis, aquela do álbum do Campeonato Brasileiro, ganhei meu primeiro disco dos Beatles. Coincidentemente, era o primeirão deles, Please Please Me. Levei um choque ao escutar aquela harmonica da introdução de Love me Do, sob os olhares e sorrisos cúmplices do meu pai, beatlemaníaco assumido. Começava o mito The Beatles na minha vida.

Mas, muito antes disso, as sombrancelhas de Paul MacCartney, os dentes tortos de John Lennon, os cabelos cortadinhos de George Harrison e o narigão de Ringo Starr já tinham conquistado uma legião de adoradores mundo afora. Pelo menos foi o que as revistas me contaram. Mas minha paixão por bandas inglesas – como o Blur, o Oasis, a Coldplay, e por aí vai... – começou com as músicas que dão o tom em ‘A hard day’s night’. Porque bandinhas inglesas são inglesas (e características) em qualquer momento.

E ingleses, vocês sabem, são ingleses. Humor nonsense bem na linha Monty Phyton dão o tom de ‘Os Reis’, num filme em que Ringo Starr é tudo. Seja nas piadas ou nos clipes, é ele sempre quem tem a melhor tirada. Numa entrevista coletiva (na realidade, a banda diluída em uma multidão de repórteres num saguão de hotel, que me pareceu muito mais interessante que as atuais, demasiado burocráticas), uma jornalista pergunta à Ringo se ele é um roqueiro ou um modelo. Ele responde, sério: ‘Sou um modeiro’.

Aposto também que muitas meninas, como a Rita Lee, ficaram enrolando seus cachinhos ao som de  “And I love her”. E que as fãs histéricas que corriam atrás dos Beatles eram realmente fãs histéricas. E, convenhamos, não pode existir personagem mais neurótico que o vô de Paul, chamado John McCartney, - seria uma tentativa de juntar Lennon e Macca na mesma pessoa? 

Pode ser só uma pergunta de gente fanática/paranóica. Mas o final do filme não me deixa mentir: o velho John, subindo de helicóptero, joga as fotos com autógrafos falsificados dos Beatles, como que presenteando os fãs, que ficam olhando para o teto da sala de cinema. Autógrafos falsificados, mas who cares? São os Beatles.

Eu me lembro. E você também.
 

Manuela Martini Colla
manuela@baguete.com.br
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