O (último) beijo hollywoodiano de Billy (Wilder)
Por Marco Antonio Bart

Não sei como é para vocês, mas eu às vezes fico "alto" depois de uma experiência estética particularmente impactante. Sabe como? Zonzo, abobado, meio feliz e meio confuso. Isso é raro, mas ainda acontece comigo. A primeira vez em que isso rolou foi quando assisti pela primeira vez no cinema ao "Crepúsculo dos Deuses", de Billy Wilder, em 1993. Já tinha visto na TV, dublado, mas ao assistir no telão - sem legendas! - o treco bateu como eu nunca tinha sentido antes. Saí pela rua andando meio sem rumo, com as cenas na cabeça. 

Quantos cineastas - cineastas não, vamos ampliar, quantos artistas -  vocês conhecem que sejam capazes de causar este impacto? 

Billy Wilder, falecido dia 27 de março aos 95 anos, era um desses raríssimos artistas. Ainda mais raro, por conseguir sê-lo num meio no qual a própria palavra - arte - soa como palavrão: Hollywood. Paradigma insuperável da sétima arte, o diretor contra o qual todos os outros têm de se medir vez por outra. Sem sucesso, claro. Wilder e seus filmes representam a expressão máxima do cinemão hollywoodiano, o mais longe - em forma e conteúdo - que qualquer cineasta poderia chegar usando as regrinhas do cinema clássico narrativo. Quem pode duvidar dessa verdade? Gente como Woody Allen, Steven Spielberg, Martin Scorcese e Pedro Almodóvar não duvida. 

Não houve quem conseguisse dizer tanta coisa, tão bem dita, com tamanha elegância e verve, quanto Billy Wilder em seus filmes. Paradoxalmente, o cineasta que representou com sua obra o apogeu da indústria cinematográfica americana não seguia, de modo algum, a cartilha careta dos grandes estúdios. Ele nunca fez filmes para agradar o povão com truques baratos ou sentimentalismo. Mesmo nas mais gaiatas comédias, o travo amargo e irônico de um artista que conseguia enxergar o que havia de pior (e melhor) na vida impedia sua obra de cair na banalidade. Nem nos momentos mais picantes e escrotos, ele exalava classe e inteligência. Mais de uma vez, ele comprou briga com seus superiores pelo conteúdo deste ou daquele filme; e nunca recuou. 

Ele fez filmes que ultrajaram seu tempo pela amoralidade ("Pacto de Sangue", 1944), por seu realismo sombrio ("Farrapo Humano", 1945), pela exposição dos podres de Hollywood ("Crepúsculo dos Deuses", 1950), por mostrar a ilimitada ganância humana ("A Montanha dos Sete Abutres", 1951), por brincar com a sexualidade travada dos ianques ("O Pecado Mora ao Lado", 55, "Quanto Mais Quente Melhor", 58, "Irma La Douce", 63, "Beija-me Idiota", 64), e até com a Guerra Fria ("Cupido não Tem Bandeira", 61).  Ao mesmo tempo, nunca deixou de ter em mente o puro entretenimento do espectador, usando a linguagem cinematográfica mais cristalina, sem excessos, tudo com começo-meio-fim. Não que ficasse no tati-bitate; ele apenas entendia a arte de dizer muito com poucas palavras, com os diálogos exatos e as imagens certas. 

Ele fez as melhores comédias. "Quanto Mais Quente Melhor" (recentemente eleita pelo American Film Institute como a melhor comédia da história do cinema americano), "O Pecado Mora ao Lado", "Irma La Douce", "A Primeira Página" (74), "A Incrível Suzana" (42). E, é claro, "Se Meu Apartamento Falasse" (60), o mais lindo, irônico e comovente filme já feito - equílibrio perfeito de tragédia e risos, comentário sociológico, comédia romântica, e tanta coisa mais.

Ele fez os dramas mais contundentes. "Pacto de Sangue" e "Testemunha de Acusação" (59), clássicos do cinema policial; "Farrapo Humano", apavorante retrato do alcoolismo; "A Montanha dos Sete Abutres", massacrante estudo sobre a falta de escrúpulos no jornalismo. E, é claro, "Crepúsculo dos Deuses" - meu filme favorito de todos os tempos, impiedosa alegoria da decadência (e crônica da própria Hollywood) travestida de humor negro.

Infelizmente, Wilder já estava "morto" para a indústria que ele ajudou a ter seus dias de maior glória. Há mais de vinte anos: desde 1981, ano em que completou "Amigos Amigos, Negócios à Parte", o diretor austríaco (radicado nos EUA desde 1934) não filmava. A despedida foi com um filme, aham, "menor" dentro de sua carreira, refletindo um esgotamento criativo que já vinha desde 1963 - quando lançou sua última obra-prima inquestionável, "Irma La Douce". Mas mesmo a lista de seus filmes, aham, "menores" inclui petiscos como "Sabrina" (52), "Inferno Nº17" (53), "A Mundana" (48) e "A Vida Secreta de Sherlock Holmes" (70), todos altamente apreciáveis, no mínimo. Morto primeiro na indústria, e agora fisicamente, já não havia lugar para Billy Wilder e seu cinema há muito tempo. 

Mas eu comecei esta arenga toda aqui falando da emoção que os filmes de Wilder podem provocar, como o "barato" que eu senti em "Crepúsculo dos Deuses". Seus filmes estão recheados dessa emoção, nos quais você não apenas sente que está testemunhando grandes momentos da história do cinema, mas também de sua própria vida como cinéfilo... e como gente. O monólogo final de Gloria Swanson em "Crepúsculo", a lancinante caminhada de Ray Milland por Nova York em "Farrapo Humano", as meias verdes de Shirley MacLaine em "Irma La Douce", a cara de canalha de Walter Matthau em "The Fortune Cookie" (67), a solidão de Jack Lemmon antes do final feliz de "Se Meu Apartamento Falasse"... a lista é enorme. 

E pode ser resumida em uma única imagem, símbolo do que o cinema pode oferecer de mais provocante e sedutor: as pernas de Marilyn Monroe surgindo sob uma esvoaçante saia branca em "O Pecado Mora ao Lado". Provocante e sedutora como a própria arte de Billy Wilder. 

Marco Antonio "Bart" Barbosa, 28 anos, nunca vai se cansar de assistir, de novo, de novo e de novo, a todos estes filmes citados acima.