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Cenas da vida em São Paulo – Parte 9

O sol forte do meio dia beija a cabeça dos transeuntes. Em uma travessa da Rua Augusta, uma senhora imóvel no meio da calçada filosofa com algum ser invisível:

– Eu tô te dizendo. Quase todo mundo fuma maconha em São Paulo.
– …
– Tô te falando. Quase todo mundo fuma!
-…
– Mais de 200% das pessoas de São Paulo fuma maconha. Principalmente quando está com fome.

dezembro 6, 2008   No Comments

Cenas da vida em SP – Bonnie ‘Prince’ Billy

Foto: Marcelo Costa / Scream & Yell

O show está no meio, mas o rapaz quer evitar as filas e se encaminha para o caixa para pagar a conta. Uma garota, meio bêbada, balança para lá e para cá perto do local. Ela olha esperando cumplicidade, e o rapaz se coloca atrás dela como se estivesse entrando numa fila. O segurança orienta a posição correta, e isso basta para ela puxar papo:

– Como se fosse fazer diferença, né.
– É…

Ela olha e ele tenta decifrar o que está passando pela cabeça dela até que um amigo chega e lhe passa um celular. Ela olha quem está ligando, leva o aparelho ao ouvido, e começa o diálogo:

– Oi. Onde você está? (parece perguntar a pessoa do outro lado)
– Estou num funeral – responde a menina, irritada, emendando ainda – Não posso falar muito alto, pois é capaz do cara que está encostado no bar bater em mim (diz ela olhando em direção ao homem).

A ligação continua, mas já não é possível entender o diálogo. Alguns “shhhhhhh” dominam o ambiente. Ela desliga o celular e volta para a fila. Olha o rapaz e pergunta:

– Você sabe quem é esse cara que está tocando?
– Bonnie “Prince” Billy.
– Ahhhh, ele é estrangeiro?
– Americano.
– E o que é esse som?
– Folk.
– Punk?!?!
– Foooolk!
– Ahhhhh. Parece música de velório – diz ela, virando-se para um amigo e ordenando – Vamos embora daqui antes que alguém bata em mim. E lá se foi ela para alguma balada eletrônica… ou algum forró.

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Essa cena é bastante comum em São Paulo. Na primeira vez que vi o Echo and The Bunnymen, no Via Funchal, 1999, eu havia saído de Taubaté para vir ver o show na capital. Exatamente na minha frente, ali quase no gargarejo, um rapaz vira para o lado e pergunta a outro:

– Que música toca essa banda ae?
– …
– Eles não tem nenhum sucesso, alguma música famosa?
– Olha, tem vários…
– Acho que nunca ouvi nada deles, mas eu gosto de vir a shows aqui. Semana passada eu vi o Alphaville. Foi bem legal…

O diálogo parou por ai, mas fiquei pensando durante muito tempo em quantas pessoas gostariam de estar no lugar deste cara que não tem a mínima idéia do que seja Echo and The Bunnymen ou, atualizando, no da menina que acha que Bonnie “Prince” Billy é um cantor de velórios. Em Taubaté, nos anos 80 e 90, qualquer show era um grande evento. Em São Paulo parece um mero passatempo. E passatempo é o que menos o show de Bonnie “Prince” Billy foi, apesar do Studio SP não inspirar intimismo e o som estar assustadoramente baixo.

Durante duas horas e meia (!), Bonnie “Prince” Billy mostrou ao público que realmente enxerga a escuridão. Acompanhado por mais um violão, o músico jogou tristeza no colo do público, e durante a primeira meia hora assisti ao show colado ao palco, fotografando e admirando a melodia das palavras e acordes. Porém, ao tentar curar minha gripe com cerveja, desloquei-me para o bar e deixei-me levar pelo cenário esquizofrênico de uma noite típica de São Paulo, em que algumas tribos diferentes se esbarram e se relacionam.

Fãs do cantor grudavam no palco e pediam canções, que eram atendidas de imediato. Esse fanatismo musical seguia-se até a quarta ou quinta fileiras que rodeavam a frente do palco. Dali para trás já havia um grupo – de fãs e não fãs – que separava o “gargarejo” das rodas de bate papo. E o “shhhhhhh” foi a coisa mais ouvida em toda a noite. Fiquei perto do bar conversando com um amigo, bebendo cerveja e ouvindo um fio de voz ao longe gritar “I See a Darkness”. Bonnie “Prince” Billy merecia maior atenção, mas a noite foi bastante interessante.

Quem sabe, numa próxima vez, ele não toque em um teatro em que a música seja a principal estrela e não precise ficar brigando com a busca pela cerveja, vodka ou afins; com amigos discutindo o real valor de “Chinese Democracy”, se Paul McCartney vem ou não vem e qual noite do R.E.M. em São Paulo foi a melhor; com meninas paquerando enquanto gingam o corpo dançando um som que não tem ginga. É bem provável que a noite tenha sido ruim apenas para a turma que ficou na linha que separava os dois públicos. De ambos os lados do muro a noite parece ter sido divertida. Apesar de toda a tristeza…

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Mais fotos do show de Bonnie ‘Prince’ Billy em São Paulo (aqui)

novembro 28, 2008   No Comments

Cenas da vida em São Paulo – Parte 8

Sexta-feira. Ônibus parcialmente lotado. No fundão, três amigos conversam. Um oriental está ao lado da janela do lado direito. Ao lado dele, um moreno. Na cadeira do meio, um branquelo, que o oriental insiste em chamar de mestre. Do outro lado, um homem pesca peixes sonhadores, dormindo com o sacolejar da lotação. O oriental o aponta para os dois, e ri. Os três aparentam ter mais de 35 anos.

É o oriental o responsável por manter o fluxo narrativo da conversa. Quando o silêncio se aproxima, ele logo emenda um novo assunto, como fugindo do gongo que anuncia o final da luta no boxe:

Então, acho que o Radiohead vai tocar em março aqui…

Os outros dois amigos se olham com cara de sexta-feira à noite após uma semana de trabalhos forçados:

Quem? É uma banda?
É – responde o interlocutor
Não conheço – responde um dos rapazes, pelos dois.

Alguns segundos de silêncio e o mesmo rapaz que respondeu diz, quase que de forma inaudível:

Eu comprei um CD do Renato Borghetti.
Renato o que? – pergunta o amigo da ponta.
Borghetti. É um sanfoneiro.
Tipo o Gonzaguinha? – pergunta outro
– Não, ele é gaúcho. Faz música regional.

O juiz sobre o ringue de boxe começa a contagem para encerrar a conversa. Quando chega no oito, desesperado, o oriental vai e pergunta qualquer coisa para um dos amigos:

Você comprou algum livro do Dostoievski na feira da Geografia

Quatro – responde o outro.

O ouvinte, que flagra a conversa dos três amigos, começa a pensar que – em menos de cinco minutos – a conversa saiu de Thom Yorke, passou por Renato Borghetti, chegou em Gonzaguinha e terminou em Dostoievski. Poucos escritores no mundo conseguiriam tal façanha em um curto diálogo.

O ônibus está chegando ao final, e enquanto um dos amigos tenta adivinhar os Dostoievski que foram comprados por aquele que não conhece Radiohead, mas é fã do Borghettinho (“Crime e Castigo”, já tenho, “Os Irmãos Karamazov”, já tenho, “O Idiota”, já tenho, “Os Demônios”, já tenho, “Noites Brancas”, esse eu peguei agora), o outro retoma o ponto inicial da conversa:

Qual banda que você falou que vai tocar mesmo nesse feriado?
Radiohead, responde o outro, envolvido na descoberta dos outros três Dostoievski que foram comprados.

Se alguém disser a você que o Radiohead vai tocar em São Paulo no feriado, duvide.

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O ônibus chega ao ponto final, metrô Vila Mariana. Os três amigos descem e uma conversa entrecortada passa pelo ouvinte, que só consegue pegar uma frase. Uma amiga diz para a outra, enfaticamente:

Eu quero essa cidade só para mim.

Nananinanão. Vai ter que dividir.

novembro 15, 2008   No Comments

Cenas da vida em São Paulo, Parte 7

Lotação, oito e pouco da manhã do meio de uma semana qualquer. Três senhoras conversam animadamente no último banco do ônibus. Uma delas, mais morena, abre o coração para as amigas:

“Minha sobrinha ia toda semana à minha casa. Era sempre a mesma coisa:
– Tia, não consigo arranjar emprego. Quando falo que tenho dois filhos, já era…

E ela é uma morena bunita!!!

Até que certo dia ela parou de ir em casa. Passado uns quatro meses, ela apareceu:

– Tia, arranjei um trabalho. Eu tô dançando na Augusta…
– Só dançando????
– Só dançando, tia.
– Com esse bundão??? (enfática)
– Só dançando, tia!

Tudo bem, né (continuou a senhora para as amigas no lotação, que ouviam atentas), ela tinha que sustentar os meninos. Um tempo depois, ela apareceu em casa novamente:

– Tia, eu não tô mais só dançando…
– Você tá dando, minha filha?????
– Não, tia, não é isso! É que eu arrumei um namorado lá na boate. Ele é mais velho, é carinhoso e está cuidando de mim.

E não é que tempos depois, o homem comprou uma casa no Jaçanã, e eles foram morar juntos, ela e os pirralhos!!!! Faz uns meses que ele morreu e deixou tudo pra ela…

– Que beleza!, comentou uma das amigas, na lata, para diversão das outras.”

O mundo, às vezes, é uma grande comédia…

março 20, 2008   No Comments

Cenas da vida em São Paulo, Parte 6

O ônibus desce vagamente a Rua Augusta em direção aos Jardins. O tempo é mezzo frio e aquela famosa garoa paulistana marca presença. O trânsito não chega a ser caótico, mas é lento. O céu cinza lembra dias tristes.

O rapaz está indo ao cinema assistir a repescagem dos filmes da Mostra Internacional de São Paulo, finda um dia antes com a primeira exibição oficial de “Onde os Fracos Não Tem Vez”, dos Irmãos Coen, na América do Sul.

Pela janela do ônibus, o rapaz observa a movimentação de pessoas na Augusta. O ônibus atravessa a Paulista, passa pelo Conjunto Nacional e pára no sinal da Alameda Santos. Garoa e o transito é lento.

O veículo, lotado, atravessa vagarosamente a Alameda Santos e desce a Augusta devagar quase parando. O rapaz olha para fora e percebe um homem descendo a calçada. O homem pára em frente ao Habibs, em frente a três pessoas recostadas em uma pilastra. Ele faz um gesto característico de quem está pedindo cigarros para a mulher da ponta. Ela meneia a cabeça negativamente.

O ônibus desce vagamente, o que permite ao rapaz acompanhar a cena com calma. O homem insiste no pedido de cigarro, e um amigo ao lado da mulher à salva cedendo um bastonete nicotinoso ao pedinte. Ele pega, leva aos lábios, e faz outro gesto, pedindo fogo. O amigo da mulher acende, o pedinte agradece e deixa os três em paz.

Com o cigarro nos lábios, o pedinte desce a Augusta dando uma tragada tão forte que parece preencher todos os espaços de seu pulmão com nicotina. A calçada está movimentada. Aproximadamente dez passos após pedir o cigarro, o pedinte cruza um senhora vindo na direção contrária e… lhe desfere uma forte cotovelada. Sem mais nem menos.

A senhora cambaleia, mas não cai. Ela aparenta ter mais de 50 anos, enquanto o pedinte deve ter uns 30. Dentro do ônibus, o sangue do rapaz ferve. O ônibus acelera e pára no ponto. O rapaz desce do ônibus procurando o pedinte. Enxerga apenas a senhora, já recomposta, que parece tentar entender o que aconteceu, auxiliada por duas pessoas que também viram a cena.

O rapaz sobe a rua em sua direção, atônito. Antes, porém, cruza o pedinte, que está sendo devidamente “acariciado” por dois policiais. Eles o levam para uma entrada de caixa eletrônico, e a última imagem que o rapaz vê é o cigarro voando amassado e beijando a calçada da Rua Augusta. Ele dá meia-volta e não consegue parar de pensar no quanto “Onde os Fracos Não Tem Vez” é real.

fevereiro 1, 2008   No Comments

Cenas da vida em São Paulo, Parte 5

Rua Augusta, 8h20, manhã de 31 de dezembro de 2007. O sol está a pino e os relógios marcam 27 graus. O dia está apenas começando. Um homem de uns 40 e poucos anos desce cambaleante pela calçada levando na mão esquerda uma sacola de plástico que parece muito maior do que o que ela leva dentro de si. Visivelmente abalado alcoolicamente, nosso amigo não caminha, dança ao som do vento, embora nem esteja ventando.

Do outro lado, uma garota deixa uma casa noturna da Augusta (se é que você nos entende) gritando para o amigo na portaria:

– Vou ali fazer uma correria, já volto.

Ela é, notadamente, uma dama da noite. Magra, com um colant cinza por baixo do top preto, ela não aparenta ter mais do que 30 anos. É fim de expediente, e mesmo assim ela brilha na manhã ensolarada de São Paulo. Se retirar a maquiagem e colocar uma roupa um pouco mais normal, poderia perfeitamente ser apresentada como namorada de algum sortudo numa casa de família tradicional, e todos iriam adorá-la. Ela caminha decididamente, mas é abordada pelo bêbado. O diálogo que se seguiu dificilmente poderia ser reproduzido fielmente, mas vale a tentativa:

– Oi, oi, oi – diz o rapaz pegando a mão da moça e beijando-a como se ela fosse uma princesa (e ela deveria realmente ser… para ele).

– Oi, tudo bem? – responde ela retribuindo ao homem uma atenção insuspeita; é possível perceber que ela está sendo importunada, que ela não queria ter parado ali, mesmo assim ela trata o homem com a maior delicadeza possível.

– Então, e ai? – diz ele

– É isso, é isso – responde ela, apressadamente

– Espera, você é linda demais – e a voz dele carrega no “demais” deixando o ar com cheiro de algum aguardente barato; ela ainda permite que ele a segure pelas mãos, mas o improvável casal não consegue terminar uma frase útil que seja.

– É bom olhar você…

– Que legal…

– É legal…

– Um barato…

– Sabe… sabe… sabe…

– Eu acho muito legal…

– (sorrisos)

– Eu preciso ir…

– Olha, não…

– Então…

– Pô, você lembra???

– Lembro, claro que lembro – ela solta a mão dele e volta ao seu trajeto normal…

– Ela lembra, ela lembra – ele comenta sorridente com as pessoas no ponto de ônibus, e grita para ela:

– Feliz ano novo.

Ela apenas acena a mão e some entre os prédios. Ele, atingido pelo vento que não venta, cambaleia, e continua seu trajeto descendo a Augusta. Aproximadamente uns vinte metros depois aborda outra dama da noite, tenta pegar a sua mão, e ante a negativa vai direto para o final da história:

– Feliz ano novo.

O sol está a pino e o ano está acabando. Previsão para 2008: ressaca.

dezembro 31, 2007   No Comments

Cenas da vida em São Paulo: Clichês

Sábado, um rapaz desce a Rua Augusta absorto em sua audição de MP3 quando percebe que, alguns metros a frente, um casal de meninas vive uma cena de amor. A primeira coisa que lhe vem a cabeça é o comentário – machista, diga-se de passagem – de um velho amigo, que diz que (quase) sempre é possível perceber quem faz o papel de homem em uma relação lésbica. Segundo ele, uma das meninas sempre é menino.

Por mais complicada e pouco analítica que seja essa opinião sou obrigado a concordar que, neste caso, ele estava certo. “Ela ele” era de média estatura, camiseta sem mangas mostrando os braços malhados, cabelo curto e pose de bad boy. “Ela ela”, por sua vez, tinha pose angelical: magrinha, cabelos loiros escorridos, voz fina. As duas caminhavam em direção ao centro em uma discussão que chamava a atenção dos transeuntes.

Em um certo momento, a loirinha de rosto angelical parou – enquanto a morena de cabelo curto continuou caminhando – e sacou de sua bolsinha um molho de chaves. Correu para alcançar sua pretensa metade e chacoalhou o molho em frente ao rosto “dele”. O resultado, cinematográfico, você pode imaginar: a menina com pose de bad boy desferiu um bofete sem dó no rosto da loirinha, que abaixou a cabeça delicadamente (não deve ter doído) e, orgulho ferido, começou a caminhar apressadamente com o rosto entre as mãos.

A cena que se segue já aconteceu com milhares e milhares e milhares de pessoas: “Ela ele” fica imóvel. O tempo pára, enquanto “ele” percebe que cometeu um ato imperdoável (não que todo mundo já tenha desferido um tapa na pessoa que ama, mas todo mundo já fez/falou algo que, assim que aconteceu, percebeu que errou), passa a mão no rosto e faz a única coisa que lhe resta: correr atrás de seu amor ferido.

A morena alcança a loirinha no meio da subida da Rua Costa – uma travessa da Augusta – mas a loirinha não quer saber de reconciliação. Se desvencilha e desce a Augusta a mais de 30 Km por hora fugindo do olhar recriminador de várias pessoas e de um cachorrinho branco, que late, mas não é ouvido. A morena a persegue na mesma toada falando – com voz grossa: “Me perdoa… você também não ajuda”…

Antes de subir a Rua Costa em direção a sua casa, o rapaz que ouve MP3 observa, ao longe na Rua Augusta, as duas meninas enfim abraçadas em frente a um bordel de terceira categoria. “A noite de amor vai ser quente”, imagina, enquanto volta a ouvir o novo álbum do Radiohead…

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Corte para o domingo. O rapaz está em pé em frente à porta de desembarque do ônibus, quando percebe que um outro rapaz está tentando, inutilmente, concluir uma ligação no celular. Lá pelas tantas, ele consegue a linha:

– Alô??? Onde você está? Na padaria? A ligação está péssima…. Ahhh, caiu…

Ele insiste no mesmo momento:

– Oi. A ligação estava ruim. Onde você está? No elevador? Você não disse que estava na padaria, bicha? Porque você mente pra mim? É isso mesmo! Você mente pra mim. Quando eu chegar em casa, você vai ver, viu. E trate de me esperar. Eu te odeio!!! Odeio.

Ele desliga o telefone com cara de desconsolado e parece estar pensando: “Porque eu amo este cara, porque????”

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O amor é um graaaande clichê…

novembro 13, 2007   No Comments

Cenas da vida em São Paulo: Woody

 

woody_camiseta

Sexta-feira, pouco mais de sete da noite, escuridão. O cara sai do trabalho cansado pela semana intensa, mas feliz pelo sábado e domingo pela frente. Segue pela Rua Amauri atolada de carros importados, atravessa a movimentada Av. 9 de Julho, e quando está no meio do canteiro, no cruzamento com a Av. Europa, é abordado por um ambulante. De bermuda (apesar do vento frio), camiseta rasgada e pacotes de balas que ele procura vender para os passageiros dos carros parados no sinal vermelho, o ambulante todo animado puxa papo:

– Cara, eu adoro esse cara ae – diz ele apontando para a camiseta do rapaz.

O rapaz, sem entender muito o que está acontecendo, pensa que ele deve ter confundido a pessoa desenhada na camiseta, mas o ambulante continua:

– Os filmes dele são muuuuuito doidos. Me amarro.

– Eu gosto muito – responde assustado o rapaz; está escuro no cruzamento da duas grandes avenidas, mas o papo começa a ficar interessante.

– Onde você comprou essa camiseta?

– Ganhei da minha namorada…

– É lindona, viu. Esse cara é bão.

– É mesmo – responde o rapaz, e emenda – mas nem todo mundo gosta dos filmes dele…

– Eu me amarro. São doidos pra caralho. E os livros também são muito bons!

Nesta hora, o rapaz trabalhador quase tem uma sincope. “Como assim, os livros dele? O cara leu os livros dele que eu mesmo não li?”, pensa, sem humildade. Consegue apenas responder, no momento em que o sinal verde passa para o amarelo antes de se transformar em vermelho:

– Os livros eu ainda não li!

– Pô, você passa sempre aqui? Olha, na segunda eu não vou vir, mas qualquer coisa, passa aqui na terça que eu te empresto. Eu tenho os três!

O rapaz atravessa a rua totalmente sem entender os dois minutos que se passaram passos atrás. Agradece o ambulante e não diz se vai passar na terça para pegar o livro; sorri desajeitado e caminha sobre a faixa de pedestres enquanto o ambulante, também sorrindo, leva seus pacotes de balas para os carros que estão parados no sinal.

– Valeu pelo papo, abraço! – diz o rapaz quando está chegando ao outro lado da calçada. O ambulante é todo sorrisos. Elogia novamente a camiseta antes de se perder em meio aos automóveis…

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Em homenagem a cena acima assisti, neste sábado, “A Última Noite de Boris Grushenko” (“Love and Death”, 1975), comédia menor – mas muito divertida – do diretor citado. O filme conta a história de Boris, um russo que, na véspera de ser executado por soldados franceses por um assassinato que não cometeu, recorda toda a sua vida desde criança até o momento derradeiro. Neste emaranhado de lembranças, citações de filósofos, inserção de personagens de Dostoiévski na trama, a descoberta de que não existem garotas na vida após a morte, e teorizações sobre o amor, o sofrimento e a morte, ao menos um momento antológico: Boris dançando com a morte, reeditando a descoberta clássica de seu diretor favorito, Ingmar Bergman, cujo personagem desafiou a morte para uma partida de xadrez, mas descobriu que não se pode confiar no anjo vestido de preto.

setembro 29, 2007   No Comments

Cenas da vida em São Paulo: O acidente

Toca o telefone na casa Callegari Costa. Eu atendo:

– Alô
– Alô. É o Marcelo?
– Sou eu mesmo.

Do outro lado da linha, a pessoa parece gaguejar, mas continua:

– Oi, Marcelo. Aqui é o Antônio. Fui eu… que peguei você na Consolação… na sexta-feira.

Paro alguns segundos e começo a pensar: me pegou na Consolação? Será que eu peguei um taxi? Sexta? Mas eu voltei de Buenos Aires na quinta, e nem foi de taxi. Será que eu esqueci algo no ônibus? Será… ahhhh, o senhor que me atropelou…

– Oi seu Antonio!
– Oi, Marcelo! Eu estava ligando para o seu celular, mas a ligação não estava completando. Então peguei o seu telefone no boletim de ocorrência. Liguei hoje e a sua faxineira atendeu. Ela disse que você devia voltar bem tarde…
– Sim, sim.
– Eu até passei na sua rua, mas não encontrei o número do seu prédio…
– Eu acho que ainda estava meio grogue na hora que falei com o policial…
– É, pode ser. Está tudo bem com você? Não dormi direito esses últimos dias.
– Está tudo bem sim, seu Antonio. Uns arranhões, uns roxos, mas está tudo ótimo. Mais uns dias e estou inteiro…
– Que bom, que bom. Olha, eu dirijo desde 1973, e nunca tinha acontecido isso comigo. Rezei para que você estivesse bem…
– Também nunca aconteceu comigo, mas sem problema, estou me recuperando e o importante é que não quebrei nada…
– Fico mais aliviado, viu. Você está precisando de alguma coisa?
– Não, não, muito obrigado. Está tudo ótimo…
– Se precisar, pode ligar, viu. E eu ainda não sei dizer o que aconteceu…
– Não se preocupe, por favor. Estou bem mesmo. E tinha que acontecer. O importante é que não aconteceu nada mais grave.
– Isso é verdade. Então se cuide. Vou ligar daqui alguns dias para saber se você se recuperou bem.
– Pode ligar. Agradeço a sua preocupação!
– Fique com Deus.

setembro 10, 2007   No Comments

Cenas da vida em São Paulo: Batman

Na sexta, ao sair da casa da minha amiga aniversariante, com uma Nortenha e pouco na cabeça, caio na Amaral Gurgel esquina com a Major Sertório. Quem é de São Paulo sabe: esse é um território dominado por travecos. Atravesso a avenida em direção ao posto de gasolina do outro lado da rua.

No posto, um casal de idade observa com interesse o rebolar de um(a) moreno(a), que insiste em tentar baixar a micro-micro-micro-micro saia que não tapa nem 10% de sua bunda (perfeita, por sinal, o que o diferencia da grande maioria das mulheres. Como diz um amigo meu, se a mulher é muito perfeita, peitos, bunda e tal, desconfie: pode ser um travesti).

Com um fio dental, ele(a) se arrebita todo(a) na porta de um taxi, fala alguma coisa, levanta e xinga o motorista com uma voz mais grossa do que a minha. Não bastasse a cena surreal, cerca de dez passos depois a piada se completa: um senhor aparentando uns 60 anos baixa a porta de ferro de sua loja. Ele parece um portuga típico, com barba, bigode, barrigão, cara séria de quem acha que está sendo passado para trás. Ao baixar a porta até o fim, ele se vira para um pequinês que eu nem havia percebido no cenário, e diz com um fiozinho de voz insuspeito, que poderia facilmente não ser ouvido tamanho a leveza das palavras: “Vamos embora, Batman?”.

Me perdoe, mas a vida é deveras divertida.

agosto 18, 2007   No Comments