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Dylan com café, dia 80: Fallen Angels

Aproveitando para dar uma pausa nos discos de material autoral (algo semelhante ao que fez no começo dos 90 com a dobradinha “Good as I Been to You”, de 1992, e “World Gone Wrong”, de 1993), Bob entrou com sua banda em estúdio em 2014 e registrou 23 canções de outros autores, a grande maioria delas gravada por Frank Sinatra na virada dos 50 para os 60, pinçando 10 delas para o seu novo álbum. “Shadows of Night” (2015), o disco em questão, foi o oitavo lançamento (em 36) de Bob a bater no número 1 da parada britânica (um feito que grandes álbuns como “Blonde on Blonde”, “Blood On The Tracks”, “Oh Mercy” e “Time Out of Mind” não alcançaram), posicionando-se ainda em sétimo no ranking da Billboard. Se ele havia tirado 10 de 23 para o álbum, restavam 13 no HD da gravadora, certo? O natural seria seguir o embalo e prensar essas “sobras” no acetato e lançar como um disco novo, mas ninguém pode chamar Dylan de preguiçoso, porque ele voltou ao estúdio durante 2015 e 2016 para registrar, novamente, uma leva de 12 canções, 11 delas gravadas por Sinatra (a única exceção: “Skylark”), para seu 37º disco, “Fallen Angels” (2016), lançado 13 meses depois de “Shadows of Night”.

A rigor, Bob (que assina novamente a produção do álbum com o codinome Jack Frost) enxugou o set up de gravação eliminando metais (trombone e trompete, mas mantendo a trompa) do disco anterior e concentrando-se na banda que o acompanha religiosamente na estrada (Charlie Sexton e Stu Kimball nas guitarras, Donnie Herron na steel guitar e na viola, Tony Garnier no baixo, George Recile na bateria) com o acréscimo especial de um terceiro guitarrista, Dean Parks. E só. A “mudança”, porém, como era de se esperar, não afeta o clima suave do disco, “uma espécie de livro de memórias sentimental” (como descreveu o crítico da revista Mojo), que soa uma sequencia direta do anterior. Ou seja, quem gostou de “Shadows”, ganhou “Fallen Angels”. Quem não gostou, teve uma segunda chance de revisão, com “Melancholy Mood”, “Young at Heart”, “It Had To Be You” e “On a Little Street in Singapore” colocando esse álbum em discreta vantagem, ainda que ambos soem um delicado passatempo nostálgico.

Especial Bob Dylan com Café

agosto 27, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 79: Cutting Edge

Dentro do processo de “auto-pirateação” proposto pela série Bootleg de Bob Dylan (iniciada em 1991 com o primeiro lançamento triplo), este volume 12 é, provavelmente, o ponto mais alto de qualidade, não só porque cobre um dos principais momentos da carreira de Bob (o período de 65/66 em que ele abandona o gueto folk e se transforma em um grande pop star devido a tríade mágica de álbuns “Bringing It All Back Home”, “Highway 61 Revisited” e “Blonde on Blonde”), mas porque a liberação do material deste período foi praticamente completa, permitindo um mergulho aprofundado nas ideias musicas de Dylan nesses longos dois anos revolucionários.

Lançado em novembro de 2015, “The Bootleg Series Vol. 12: The Cutting Edge 1965–1966” foi apresentado em três versões: a mais simples era o tradicional CD duplo da série com 36 takes alternativos de clássicos como “Just Like a Woman”, “Desolation Row” e “Subterranean Homesick Blues” somando 145 minutos numa edição “best of” do box; a versão Deluxe compilava seis CDs num mergulho mais aprofundado sobre a gravação de diversas faixas do período (o CD 3, por exemplo, praticamente decupa toda a gravação de “Like a Rolling Stone” em 20 faixas); e, por fim, uma sonhada Collector’s Edition trazia em 18 CDs e 9 compactos de 7 polegadas praticamente todo o material gravado por Dylan no período somando quase 20 horas de gravações (vendido a 600 dólares na época do lançamento, essa caixa limitada e numerada – abaixo – hoje em dia pode ser encontrada entre R$ 4 mil e R$ 10 mil).

Via de regra, as críticas reforçam que o volume duplo mais simples compila os melhores momentos dos 18 CDs (a curiosidade mais interessante dos 20 tracks de “Like a Rolling Stone”, por exemplo, está presente no CD duplo, um fragmento em arranjo de valsa que mudou o rumo da gravação), mas o box sêxtuplo traz itens interessantes para fãs principalmente no CD 2 (com variações de “It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry”) e no CD 5 (com takes de “Visions of Johanna”, “She’s Your Lover Now” e “Leopard-Skin Pill-Box Hat”). Ou seja, a versão dupla funciona realmente como um Best Of dos dois boxes seguintes, mais indicados para fãs e completistas. Porém, ouça com atenção essa versão dupla, pois ela aprofunda o olhar de maneira muitas vezes poética sobre vários clássicos do período mais fértil da carreira de Dylan. Para mim, um dos pontos mais altos das “Bootleg Series”.

Especial Bob Dylan com Café

agosto 23, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 78: Shadows

O ano de 2015 foi aberto com um novo álbum de Bob, seu 36º disco, e muitos se surpreenderam com a escolha inusitada do artista em revisitar, com seu fio rarefeito de voz, o repertório de canções de amor e abandono interpretadas pelo vozeirão de Frank Sinatra na virada dos anos 1950 para os 1960. As pistas, porém, já vinham sido deixadas pelo caminho, do disco de covers natalinas de 2009 (“Christmas in the Heart”) a integra enfim reeditada das Basement Tapes em 2014, oficializando também dezenas de covers das sessões no porão da Big Pink com a The Band em 1967. Isso sem contar que em todas as entrevistas no novo século, Dylan sempre afirmava que só ouvia “música antiga” (muitas delas recriadas e transformadas em “novas” nos discos “Modern Times” e “Love and Theft”, um titulo apropriado), mas regravar Frank Sinatra era o tipo de ousadia inesperada que surpreendeu a todos.

Gravando ao vivo em dois, máximo de três takes com sua banda no mesmo estúdio em que Sinatra registrou a maioria dessas canções (o Studio B da Capitol Records, no coração de Hollywood), Dylan registrou 23 canções, das quais 10 foram selecionadas para o álbum “Shadows In The Night” que, segundo Bob, visava retirar essas canções da sepultura e traze-las a vida novamente. Segundo o engenheiro de som Al Schmitt, Bob chegava ao estúdio com a banda, e ouvia a canção que iria regravar várias vezes até descobrir a maneira de fazer com que a canção soasse… nova. O resultado final é um álbum bonito que “mesmo quando vacila, mantém seu humor singular: apaixonado, assombrado, suspenso entre um presente inconsolável e todos os arrependimentos do passado”, segundo definição de Jon Pareles no New Tork Times. O crítico David Fricke, da Rolling Stone, achou o disco “noir” enquanto Stephen M. Deusner, no Pitchfork, escreveu que “o canto de Dylan é persuasivo sem ser excessivamente reverente”.

No Scream & Yell, Gabriel Innocentini definiu: “Esse é o mais recente exemplo de que ele é um dos artistas mais autoconscientes a surgir no universo popular”. Pessoalmente, acredito que é um disco bonito que, porém, tende a ser esquecido rapidamente, funcionando mais como um exercício de lembrança momentânea que o próprio tempo se encarrega de eclipsar – não a toa, na época do lançamento do disco em 2015, entre cinco e sete canções entraram no set list da Never Ending Tour (em meio a “Blowin’ in the Wind”, “Love Sick” e “Tangled Up in Blue”), sendo que hoje, três anos depois (e mais quatro discos de covers depois, temas dos próximos cafés) um ou outra aparece tímida no set – importante ressaltar que Bob manteve um belo registro vocal ao vivo, ainda que mais para Tom Waits que para Sinatra (como você pode ouvir no bootleg abaixo). Ainda assim, sucesso de vendas (número 7 na Billboard e 1 na parada inglesa transformando Dylan no campeão de vendas mais velho a alcançar o topo), “Shadows In The Night” era apenas a ponta do iceberg. Calma que vem mais…

Especial Bob Dylan com Café

agosto 21, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 77: Basement Complete

Sempre pairou uma magia mística sobre as “Basement Tapes”, as fitas gravadas das sessões de Bob Dylan na companhia da The Band tocando no porão de uma casa rosa entre junho e outubro de 1967, um ano após Bob sofrer um acidente de moto e tirar férias das turnês até 1974. O primeiro a desdizer essa mística foi o próprio Robbie Robertson: “As sessões foram feitas com bom humor. Era algo entre o ultrajante e o cômico. Foi um tanto irritante quando as músicas começaram a ser pirateadas. Lançamos o disco (em 1975) na base do ‘já que estão documentando isso, que seja em boa qualidade’”. Do outro lado, o crítico Greil Marcus dizia que “certas linhagens fundamentais da linguagem cultural americana foram resgatadas e reinventadas” naquelas sessões. Hummm.

Veja bem, o material era de qualidade tão duvidosa que ao selecionar canções para o álbum duplo lançado em 1975, Robbie incluiu oito canções da The Band entre as 24 faixas, quatro delas nem gravadas no porão da Big Pink, para tentar levantar a qualidade do álbum. Em seu texto na The New Yorker em 1999, Alex Ross dava a real: “Dylan estava farto do papel de messias e produziu dezenas de números dolorosos da velha escola (no porão da Big Pink)”. Dúvidas? Em novembro de 2014, dentro das Bootleg Series, a Columbia Records enfim liberou a integra das sessões totalizando 138 músicas divididas em seis CDs, e como bem definiu a crítica de Sasha Frere-Jones na The New Yorker, “para cada momento de revelação há cinco descartáveis”.

Ou seja, é possível dizer que existem no máximo uns 25 números que realmente interessam neste compêndio, o que lança luz muito mais sobre os exageros da crítica da época do que, necessariamente, sobre o próprio material, já que Dylan & The Band não o estavam gravando com a finalidade de lança-lo, e sim de registrar demos para serem oferecidas a outros artistas e se divertirem destroçando clássicos do rock e do folk (de John Lee Hooker a Johnny Cash, de Hank Williams e Pete Seeger a Curtis Mayfield). Observado e ouvido com distanciamento, “The Bootleg Series Vol. 11: The Basement Tapes Complete” é um passatempo interessante (principalmente para Dylan e a The Band). Criticamente não deve nem ser levado em consideração, pois não exibe um milésimo da genialidade pré (“Bringing It All Back Home”, “Highway 61 Revisited” e “Blonde on Blonde”) e pós (“Blood on The Tracks”) “Basement Tapes”. São alguns grandes músicos se divertindo num porão. E só. Divirta-se também, mas sem exageros (de preferência seguindo esse faixa a faixa esclarecedor publicado no site oficial de Dylan em 2014).

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agosto 20, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 76: World Tours

O mundo das biografias não autorizadas populares é, na maioria dos casos, um ambiente de extrema pilantragem e canalhice em que um determinado autor reúne algumas entrevistas “bombásticas” de dois tipos de pessoas: gente que no máximo cruzou a mesma rua que o biografado, quando muito, e familiares e amigos que entram nessa pelo dinheiro, afinal, se o biografado é rico e famoso, qual o problema de se ganhar alguns trocados nas costas dele, não é mesmo.

Este “Bob Dylan – World Tours 1966/1974” (2005) também é pilantragem, mas é diferente das outras porque parece feito de coração. É sério. O diretor Joel Gilbert se vangloria de ter a melhor banda cover de Bob Dylan do mundo, a Highway 61 Revisited, e centrou o foco de seu documentário no fotógrafo Barry Feinstein, que acompanhou Dylan em seu início de carreira e em suas duas maiores turnês mundiais, além de ser responsável por fotos clássicas tais como todas deste post além das capas dos álbuns “Freewheelin” (1962), “The Times They Are A Changin‘” (1963) e “No Direction Home”, trilha sonora do documentário de Martin Scorsese.

Como já comentando por aqui, a famosa turnê de Bob Dylan em 1966 (que culminou no grito de “Judas” vindo da plateia durante um show em Manchester, na Inglaterra, flagrado no álbum “The Bootleg Series – Volume 4: Live 1966 The Royal Albert Hall Concert”, lançado em 1998) o trazia pela primeira vez alternando um set acústico, para deleite dos antigos fãs, com um barulhento set elétrico (acompanhado pela futura The Band), uma heresia que deixava algumas pessoas tão transtornadas que princípios de confusão sempre aconteciam nessa parte da apresentação. A turnê terminou abruptamente após um acidente de moto de Dylan, e, traumatizado, ele aproveitou para tirar 8 anos de férias das turnês, só retornando em 1974.

Buscando mapear esse período, “Bob Dylan – World Tours 1966/1974” traz entrevistas com o cineasta D. A. Pennebaker (diretor do obrigatório “Don’t Look Back”, documentário oficial da turnê de 1966), do jornalista Al Aronowitz (que apresentou Dylan aos Beatles), e de A. J. Weberman, o cara que remexia o lixo de Dylan nos anos 70, foi processado pelo músico, e está criando um dicionário para se entender Bob Dylan. No fim das contas, vale pelas excelentes fotos de Barry Feinstein, pela cara-de-pau de Joel Gilbert e por trechos impagáveis, como a reconstituição do (suposto) acidente de moto que afastou Dylan das turnês e da mídia em 1966.

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agosto 16, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 75: Alex Ross

Em 1998, ou seja, quase 10 anos antes de publicar sua obra prima finalista do Pulitzer Prize, “O Resto é Ruído – Escutando o Século XX” (2007), o jornalista Alex Ross assistiu a 10 shows de Bob Dylan, que havia renascido (mais uma vez) das trevas com “Time Out of Mind” um ano antes. A maratona (entre setembro e novembro de 1998) serviu de base para um longo ensaio publicado na revista The New Yorker em maio de 1999 com o título “The Wanderer” e recuperado nessa coletânea de textos, “Escuta Só”, lançada em 2011. Talvez um dos melhores textos já escritos sobre Bob Dylan, “The Wanderer” tenta entender a magia deste pobre homem destruindo quase tudo o que já foi falado sobre ele. De forma delirante e divertida, Alex Ross abre seu ensaio mostrando os dentes: “Os Estados Unidos não são um país para homens velhos. A cultura pop é o deleite dos pedófilos. O que fazer com um compositor de meia-idade, muito rodado, que tende para a melancolia e o absurdo? Se examinarmos o que foi escrito sobre Bob Dylan em décadas recentes, notaremos um desejo persistente de que o sujeito morra, para que seu eu mais jovem possa assumir seu lugar mítico”. Dai pra frente, Alex enumera exemplos do “desejo persistente”, e conta cômicas passagens nos shows que presenciou: “Estou na Feira de Puyallup, 1998, neste subúrbio agrícola de Tacoma, e entre outras atrações estão presentes a vaca de uma tonelada Elmer, uma casa assombrada em miniatura montada engenhosamente na carroceria de um caminhão, bingo com aspiradores como prêmio e Bob Dylan. (…) Quando eu disse que iria seguir Dylan na estrada, obtive várias reações divertidas. (…) Alguns ficaram surpresos ao saber que ele ainda tocava em público (e ele faz mais de 100 shows por ano). As plateias foram mais diversificadas do que eu esperava: jovens urbanos do tipo que coleciona discos, pirados grisalhos, ex-hippies bem-vestidos, garotada do colégio com camisetas do Grateful Dead”.

As entrevistas com o público são divertidas, mas a análise é bem mais profunda. Pelo caminho da turnê, Alex visita Greil Marcus para depois questionar a defesa do velho jornalista sobre o exagerado elogio ao material qualquer nota das Basement Tapes (de maneira correta, mas falaremos disso no próximo café) e sua leitura “exagerada” do show de Manchester, ou o show do “Judas” (discordo de Alex). Ele sacaneia o trabalho do biógrafo Clinton Heylin (“Um documento que se anula astutamente no sentido de que cada item de informação aponta para uma falta maior de informação”), recupera uma baita citação de Lester Bangs em 1981 (“Se as pessoas vão rejeitar, ou, na melhor das hipóteses, rir de Dylan agora do mesmo modo como outrora se ajoelhavam automaticamente diante dele, então ninguém vai saber se ele fizer um bom disco de novo. Elas não estão ouvindo agora, o que talvez possa significar que também não estavam realmente ouvindo antes”), analisa letras, estruturas de canções e opina: “Desde Wagner, nenhum músico havia sido submetido a pressões contraditórias e irracionais desse tipo (na fase em que Bob eletrificou seu som e foi criticado pelos fãs). Não surpreende que Dylan tenha caído fora depois do acidente de moto”. Uma das conclusões de Alex é de que as respostas, as emoções e tudo mais está… nas canções. “Ele sempre retira sua personalidade de cena… e deixa a música emergir”. Ou seja, esqueça o homem, concentre-se na arte. E Alex escreve isso logo depois de se arrepiar com a oportunidade de um encontro não planejado com Dylan num estacionamento. Como separar? Eis a questão. Um texto genial presente no livro, mas que traz um apêndice no site de Alex (aqui) e que você pode ser lido na integra, em inglês, por assinantes da The New Yorker aqui.

Especial Bob Dylan com Café

agosto 7, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 74: Crônicas

Bob Dylan com café, dia 74: O melhor livro escrito sobre Bob Dylan foi escrito por… Bob Dylan. Na verdade, esse livro ainda está sendo escrito. Planejado para ser lançado em três volumes, “Crônicas” só teve o volume 1 editado em um já distante 2004 (ficou 19 semanas na lista de best-sellers do The New York Times de livros de não-ficção), mas bastou para provocar tanto o leitor neófito quanto o fã de primeira hora, que se surpreendeu ao ver o homem abrindo o baú empoeirado da memória para relembrar momentos de seus obscuros primeiros anos (um quebra-cabeça geralmente montando no escuro por biógrafos) tanto quanto iluminar momentos escolhidos a dedo em uma carreira vasta e repleta de mudanças. “Crônicas” é um livro de Dylan a lá Dylan: não há uma sequencia cronológica, mas sim cinco longos (e deliciosos) textos divididos em 304 páginas, que mapeiam momentos particulares da carreira escolhidos a dedo por Dylan.

Na crônica de abertura, “Abrindo o Placar” (22 páginas), Bob relembra como era a cena do Greenwich Village quando chegou a Nova York (“O inverno estava de matar”) e pouco antes de gravar seu disco de estreia: ele conhece o estúdio em que foi gravada “Rock Around The Clock”, conta que John Hammond tinha ouvido duas canções originais suas e “teve a premonição que haveria mais”, relembra o ambiente do Café Wha?, do Café Bizarre e do Gaslight além de até falar um pouco de sua família. Mais longo, com quase 90 páginas, “A Terra Perdida” foca em literatura (“Havia romances de Gogol e Balzac, Maupassant, Hugo e Dickens. Geralmente eu abria um livro no meio, lia algumas páginas e, se gostasse, voltava ao começo”), música, formação cultural (com memórias da família e da vida escolar) e suas impressões de novo morador de Nova York, ou seja, é outro texto que permite ao leitor tatear o que fomentou a mente criativa do homem – num dos momentos mais interessantes ele relembra artistas que, como ele, não seguiam as regras, gente como Miles Davis (“Repudiado pela comunidade do jazz pelo álbum ‘Bitches Brew’) e João Gilberto, Roberto Menescal e Carlos Lyra (“Que estavam se libertando do samba infestado de percussão”).

A terceira história salta para o período de gravação do álbum “New Morning”, na virada dos anos 60 para os 70, enquanto a quarta crônica relembra as gravações do grande álbum “Oh Mercy”, de 1989 (desde o dia em que Bono, do U2, apareceu na sua casa e bebedeira noite adentro, o convenceu a mostrar músicas novas o conectando com Daniel Lanois, que seria importantíssimo na vida de Dylan nos anos 90). O conto final, “Rio de Gelo”, retorna no tempo e rememora artistas que o influenciaram assim como o dia da assinatura de seu primeiro contrato com uma gravadora: “John Hammond colocou um contrato na minha frente (…) e eu disse: ‘Onde eu assino?’. Eu confiava nele. Havia no mundo uns mil reis talvez, e ele era um deles. Antes de ir embora naquele dia, ele me deu dois discos que ainda não estavam disponíveis para o público, e que achou que poderiam me interessar. Um deles era ‘King of the Delta Blues’, de um cantor chamado Robert Johnson, que eu jamais tinha ouvido falar. Ele me mostrou a capa, um desenho incomum no qual o desenhista olha do teto da sala e vê aquele cantor e violinista furiosamente intenso. Que capa eletrizante. Quem quer que fosse o cantor da imagem, ele já havia me possuído”. Dai pra frente, Bob relembra como foi ouvir Robert Johnson pela primeira vez em mais um momento especial entre tantos de um grande livro. Essencial.

Especial Bob Dylan com Café

agosto 2, 2018   No Comments

Dylan com café, dia 73: Robert Shelton

Bob Dylan com café, dia 73: O que fazer quando você é um jornalista a noticiar pela primeira vez o potencial de um jovem com futuro promissor que você assistiu em uma pequena espelunca, e observa que, nos anos seguintes, esse jovem virá a tornar-se uma das cabeças pensantes mais revolucionárias do universo artístico mundial? Robert Shelton não teve dúvidas: após publicar a resenha “Bob Dylan: A Distinctive Folk Song Stylist” em 29 de setembro de 1961 no jornal New York Times (provavelmente chamando a atenção do caçador de talentos John Hammond, que contrataria Bob em outubro) e observar o artista subir correndo os degraus na escadaria da fama pop, Shelton colou em Dylan, transformando-se em amigo e confidente, e começou a escrever uma biografia autorizada ainda nos anos 60, que seria terminada apenas em 1986, 25 anos depois daquela primeira resenha.

Tido por muitos fãs como a principal biografia de Bob, “No Direction Home: A Vida e a Música de Bob Dylan” (que voltou ao mercado numa edição atualizada em 2011 pelos editores – Shelton faleceu em 1995 – marcando os 50 anos da primeira resenha numa edição “Director’s Cut”) tem tanto pontos positivos quanto negativos. Do lado positivo, a proximidade de Dylan permitiu a Shelton acompanhar muito eventos in loco, o que traz a narrativa (ainda que muitas vezes romantizada) para a primeira pessoa: ou seja, é algo que ele viu, não que algum entrevistado (com possibilidade de distorção) lhe contou; do lado negativo, o fato de ser uma biografia escrita por um jornalista que se tornou grande amigo de seu objeto de estudo coloca o texto na defensiva ao focar muitas vezes no homem em detrimento da obra.

                    Robert Shelton (centro) com Dylan nos anos 60

Isso fica bastante nítido no trecho dedicado ao álbum “Blood on The Tracks” (e levanta “suspeitas” sobre todo o compêndio), em que o jornalista sai em defesa do homem contra todos aqueles que vangloriaram o disco por ele ter nascido de uma tragédia pessoal (o começo do fim do casamento com Sara). No faixa a faixa que faz sobre este álbum no livro, Shelton esvazia o tema polêmico universalizando o tema das letras sem falar no drama do casal (que ele presenciou) em nenhum momento. Isso não invalida a obra, mas é preciso estar atento tanto aos possíveis momentos de manipulação de Dylan (e ele sempre foi um exímio manipulador) quanto aos que Shelton protege o amigo. No saldo final, um compêndio dedicado, caprichado e repleto de informações, mas que precisa de mais uma ou duas visões (uma delas, a de Howard Sounes, e a outra o livro “Crônicas”, o café de amanhã) para que o leitor tenha uma visão menos embaçada de quem poderia vir a ser Bob Dylan (algo que talvez nem ele mesmo saiba).

Especial Bob Dylan com Café

julho 31, 2018   No Comments

Dylan com café, 72: Scrapbook 56/66

Bob Dylan com café, dia 72: Na esteira do lançamento do essencial documentário “No Direction Home” (2005), de Martin Scorsese, e de sua trilha sonora caprichada (“The Bootleg Series 7”), surgiu como complemento oficial este livro, “The Bob Dylan Scrapbook: 1956-1966” (2005), escrito por Robert Santelli, então diretor da Experience Music Project de Seattle (hoje Museum of Pop Culture) e curador da exposição Bob Dylan’s American Journey. Como observa a crítica do jornal londrino Independent na época do lançamento do livro, “o texto do especialista em Dylan não oferece nenhuma nova percepção surpreendente, mas isso não importa porque o ponto aqui é mostrar como o talento e a carreira de Dylan se desenvolveram”.

Para acompanhar esse desenvolvimento, o leitor tem a mão dezenas de xerox de documentos, letras escritas a mão pelo homem e reproduções de itens interessantes do período além de um CD com 45 minutos de áudio divididos em 14 faixas, 10 delas de falas extraídas do filme de Scorsese e outras quatro entrevistas de Dylan colhidas de rádios entre 1961 e 1966. Um texto do New York Times rememora: “Em 4 de novembro de 1961, após trabalhar em clubes do Greenwich Village, Bob Dylan fez sua estreia em Nova York no Carnegie Chapter Hall. Dos 225 lugares, 55 estavam ocupados. Menos de dois anos depois, ele era a estrela reinante do movimento das canções de protesto. Mais dois anos, e uma geração discutia se era certo que ele fosse elétrico – não que ele prestasse atenção”.

Este “The Bob Dylan Scrapbook: 1956-1966” traz a reprodução do folheto que apresentava este primeiro show de Dylan, além de cópias das letras manuscritas de “Talkin’ New York”, “Blowin’ In The Wind”, “Gates of Eden”, “It Ain’t me Babe” (escrita num papel do May Fair Hotel, em Londres) e “Chimes of Freedom” (escrita num papel do The Waldorf Astoria, em Toronto), entre outras, e reproduções dos cartazes (Folk City, “Don’t Look Back”, Newport Folk Festival), do convite de Dylan para a Marcha de Washington (quando Martin Luther King fez o discurso “I have a dream”), de releases (“Rebel with a cause”, dizia um texto da Columbia Records) e diversas outras curiosidades imperdíveis para fãs do homem.


Especial Bob Dylan com Café

julho 24, 2018   No Comments

Dylan com café, 71: Greil Marcus

Bob Dylan com café, dia 71: Robert Allen Zimmerman nasceu em 1941; Greil Marcus, 1945. A pouca diferença de idade permitiu ao jornalista acompanhar a carreira do músico in loco, atento das mudanças de comportamento à proliferação de bootlegs ainda nos anos 60 (quando escreveu na Rolling Stone o artigo “Bob Dylan: Breaking Down The Incomplete Discography”) e até os discos ruins (é dele a famosa abertura de resenha “Que merda é essa?” sobre “Self Portrait”, em 1970). Dylanólogo famoso, Greil já havia escrito “Invisible Republic” (1998), um mergulho nas “Basement Tapes” de Dylan & The Band, e retornou ao reportório do homem em 2005 quando lançou “Like a Rolling Stone: Bob Dylan na Encruzilhada”, editado no Brasil pela Companhia das Letras. A rigor, é isso que você está pensando, e um pouco mais: sim, é um livro de 250 páginas sobre uma canção pop, mas não qualquer canção, e sim aquela que, segundo Greil, mudou todas as demais canções. O jornalista mergulha na criação da música em 15 de junho de 1965 (ela lançada um mês depois como single e na sequencia no álbum “Highway 61 Revisited”), que nasceu de uma brincadeira com o hit “La Bamba”, de Ritchie Vallens, e foi ganhando contornos dramáticos com o uso de metáforas ao narrar a história de uma socialite que perdia tudo e ficava totalmente pobre.

O grande trunfo de Greil, porém, não é apenas a tentativa de desvendar a canção, mas de encaixa-la em um espaço / tempo e mostrar o quão importante ela foi para a época, o quão esse espaço / tempo influenciou a música e Dylan (e vice-versa) e o quão atual “Like a Rolling Stone” continua sendo hoje. Desta forma, Greil embarca numa máquina do tempo com o leitor a tiracolo para explicar como era o período sócio, cultural, politico e econômico nos EUA quando “Like a Rolling Stone” foi criada, e tudo que veio depois. Chegando ao número 2 da parada da Billboard (um feito para uma canção de seis minutos – Dylan se recusou a cortar a música e ela foi dividida em duas partes, uma em cada lado do compacto), “Like a Rolling Stone” é muito mais do que a canção que tirou Dylan do gueto folk e o apresentou ao mundo. Greil explica o motivo neste livro. Excelente.

Ps. De lá pra cá, “Like a Rolling Stone” foi regravada por centenas de artistas, e a lista inclui nomes como Jimi Hendrix, Rolling Stones, David Bowie, Sixto Rodriguez, The Wailers e Green Day, entre outros.

Ps2. Dica boa do Thiago Busse no Facebook: em 2010 foi lançada a compilação “Bob Dylan by Greil Marcus: Writings 1968-2010“, que reúne textos escritos pelo jornalista sobre Dylan por mais de 40 anos – inclusive os que citei nesse post!

Especial Bob Dylan com Café

julho 23, 2018   No Comments